Para um músico de jazz, gravar um disco com canções de Gershwin, Hammerstein e Johnny Mercer equivale, no caso de um sambista, a revisitar clássicos de Cartola, Nélson Cavaquinho ou Donga. Em ambos os casos, a qualidade do repertório está praticamente garantida. Porém, o que diferencia o jazzista de outro músico qualquer é sua capacidade de retrabalhar esse material sonoro, fazendo-o soar novo, até mesmo inusitado.
É o que acontece em Rendez-Vous (Blue Note/EMI), álbum que resultou do encontro da cantora norte-americana Cassandra Wilson, incontestável diva do jazz nos anos 90, com o pianista e compositor franco-alemão Jacky Terrasson, um dos músicos mais talentosos do gênero revelados nos últimos anos. O disco não deixa de ser uma coleção de velhos standards, mas a originalidade das versões criadas pela dupla faz quase esquecer esse clichê.
Curiosamente, a parceria não nasceu por iniciativa da cantora e do pianista. A idéia foi de Bruce Lundvall, o chefão do selo jazzístico Blue Note, que sugeriu a gravação, pressentindo afinidades entre Cassandra e Terrasson. Em termos musicais, trata-se de um encontro de almas gêmeas: os dois jazzistas não abrem mão de certo ecletismo e muita liberdade calcada no improviso.
Old Devil Moon, a primeira faixa, já insinua o que espera o ouvinte. A voz grave e sensual de Cassandra esboça, junto com o piano divagante de Terrasson, uma atmosfera suave e misteriosa. O arranjo prima pela simplicidade: incluindo a percussão de Mino Cinelu e o baixo acústico de Lonnie Plaxico, nada soa excessivo ou redundante. Quem não conhece a canção de E.Y. Harburg e Burton Lane, já gravada antes por cantores como Frank Sinatra, Ella Fitzgerald ou Mel Tormé, jamais poderá imaginar que ela foi criada para um musical, há exatos 40 anos.
Algo semelhante acontece em Tennessee Waltz (Stewart e King), uma canção de 1948, que já foi interpretada tanto pelo soulman Sam Cooke como por inúmeros cantores de música country. Na voz de Cassandra, ela se transforma em um melancólico blues, colorido por um piano elétrico que, dedilhado por Terrasson, jamais compromete o caráter acústico da gravação. Essa proeza é repetida pelo jazzista na suingada versão de Chan´s Song (tema instrumental de Herbie Hancock, incluído na trilha do filme Round Midnight, de Bertrand Tavernier). Terrasson alterna o teclado elétrico com o piano acústico sem provocar choques sonoros ou estéticos.
Não menos que surpreendente é a versão da jurássica Tea For Two - canção de Irving Caesar e Vincent Youmans, escrita para o musical No, No, Nanette (1925), que acabou rendendo um filme homônimo estrelado por Doris Day, em 1952. Usando uma levada funky, reforçada pelos vocais quase sussurrados de Cassandra, Terrasson forjou uma canção deliciosa, que parece ter sido composta ontem.
Mais jazzística, as versões de My Ship (Gershwin e Weill) e Remember You (Mercer e Schertzinger) lembram um pouco as interpretações de Cassandra no excelente Blue Skies (de 1989), único disco que dedicara integralmente aos standards até hoje. Compará-lo com Rendez-Vous revela que as promessas daquele trabalho foram plenamente superadas. Contando com músicos jovens do nível de Cassandra Wilson e Jack Terrasson, o jazz se mostra muito bem preparado para encarar seu segundo século de vida.
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