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Quais são as fronteiras entre o literário e o filosófico?

 decidi resgatar um tema que me chama bastante atenção, tanto por fazer parte do meu percurso enquanto leitora, como por ter-me atraído para o tipo de abordagem que eu busco desenvolver desde os meus primeiros esforços acadêmicos; a questionar quão nítida seria a fronteira entre o discurso intrinsicamente literário e o filosófico.

Em um ensaio de 1955 sobre a relação entre a obra de Rainer Maria Rilke e o pensamento de Nietzsche, Walter Kaufmann —objeto de uma recente e extensa biografia escrita pelo pesquisador Stanley Corngold, “Walter Kaufmann: Philosopher, Humanist, Heretic” (Walter Kaufmann: filósofo, humanista, herege, Princeton University Press, 2019)— busca uma explicação para o vínculo entre o poético e o filosófico:

“Um poema pode ilustrar uma filosofia na medida em que ela é uma projeção metafísica de uma experiência, de um humor ou de uma atitude. O poeta pode conhecer esse humor como um entre muitos ou como a experiência dominante da sua própria vida. Ele pode adentrar esse humor com virtuosismo ou ficar preso a ele; pode ilustrar uma mesma filosofia repetidamente ou dar vida a muitas outras; seja como um tour de force ou como um registro inconsciente de sua própria gama de experiências. Além disso, pode não estar ciente do fato de que outros autores converteram essas mesmas experiências em filosofias”.

Sem deter-se em uma das mais significativas coincidências na vida de Rilke e Nietzsche —a psicanalista Lou Andreas-Salomé— Kaufmann explica que eles compartilharam mais do que uma simples afinidade por haverem escrito durante a mesma época e no mesmo idioma; mostrando-se unidos por quatro temáticas intimamente sobrepostas, quais sejam: a extemporaneidade, o ceticismo em relação a utilização de determinados conceitos, a celebração da vida em todos os seus aspectos e, por fim, o repúdio ao sobrenatural.

Para ilustrar o primeiro desses temas, Kaufmann utiliza-se de uma passagem do sétimo poema em “Elegias de Duíno” (1923), de Rilke: “Cada volta surda do mundo tem tais deserdados, / aos quais já nada mais pertence, nem o que virá…”

Em sua interpretação, Kaufmann diz que esse trecho em muito se aproxima da mensagem de Nietzsche no transcorrer da sua obra, ao exemplo de como, em “Crepúsculo dos Ídolos” (1889), o filósofo descreve a si próprio como um homem póstumo.

Para ressaltar a afinidade entre os dois autores, Kaufmann também recorre à poesia de Rilke em “O Livro das Horas” (1905), “Novos Poemas” (1907), “Carta de um Jovem Trabalhador” (1922), “Sonetos a Orfeu” (1923) e “Cartas a um jovem poeta” (1929).

De minha parte, para enfatizar os temas listados por Kaufmann, optei por concentrar-me em uma das missivas colecionadas em “Cartas a um Jovem Poeta”. Livro que me acompanha desde a adolescência e que, até há bem pouco tempo, acreditei ter sido responsável por apresentar-me a obra de Nietzsche.

Como Nietzsche, Rilke aparenta enfatizar o poder da linguagem em determinar as reações e a avaliação dos nossos próprios atos. Assim, para ilustrar o ceticismo de Rilke em relação aos conceitos nos quais buscamos arrimo, destaco este fragmento da carta de 12 de agosto de 1904:

“Em geral, é preciso ter muito cuidado com os nomes; muitas vezes é o nome de um crime que destrói uma vida, e não a própria ação, pessoal e inominada, que talvez fosse uma necessidade muito determinada dessa vida e pudesse ser acolhida sem esforço por ela”.

Cumpre também ressaltar o momento em que Rilke questiona o papel da doença no processo de transformação e amadurecimento do seu correspondente:

“Por que o senhor pretende excluir da sua vida qualquer inquietude, qualquer dor, qualquer melancolia, sem saber o que essas circunstâncias realizam? [...] Se algum dos seus procedimentos for doentio, considere que a doença é um meio com o qual o organismo se liberta de corpos estranhos; por isso é apenas preciso ajudá-lo a estar doente, a assumir e ter sua doença por completo, pois é esse o seu curso natural.”

Os argumentos de Rilke aqui apresentados permitem-nos inferir a semelhança com muitas das colocações de Nietzsche sobre o tema, como nesta passagem de “A Gaia Ciência” (1882/87):

“Depende do seu objetivo, do seu horizonte, das suas forças, dos seus impulsos, dos seus erros e, sobretudo, dos ideais e fantasias da sua alma determinar o que significa saúde também para o seu corpo [...]. Enfim, permaneceria aberta a grande questão de saber se podemos prescindir da doença, até para o desenvolvimento da nossa virtude, e se a nossa avidez de conhecimento e autoconhecimento não necessitaria tanto da alma doente quanto da sadia.”

A carta de 12 de agosto de 1904 também possui outras reflexões que nos remetem ao pensamento de Nietzsche, ao exemplo deste trecho em que Rilke frisa a necessidade de aprendermos a celebrar a vida em todos os seus aspectos, inclusive naqueles mais terríveis e doloridos: “Precisamos aceitar a nossa existência em todo o seu alcance; tudo, mesmo o inaudito, tem de ser possível nela”.

Por fim, resta-nos apenas mencionar o tema do repúdio ao sobrenatural e, consequentemente, da coragem para encarar a vida tal como se nos apresenta, proposto por Rilke na mesma correspondência:

“Não temos motivo algum para desconfiar do nosso mundo, pois ele não está contra nós. Caso possua terrores, são os nossos terrores; caso surjam abismos, esses abismos pertencem-nos; caso existam perigos, então precisamos de aprender a amá-los”.

Essas duas últimas observações de Rilke colocam-se em uma relação bastante interessante com a fórmula nietzschiana do "amor fati" apresentada em textos como o aforismo § 276 de “A Gaia Ciência” ou neste trecho de “Ecce Homo” (1888):

“A minha fórmula para a grandeza do homem é amor fati: nada pretender ter de diferente, nada para frente, nada para trás, nada por toda a eternidade. O necessário não é apenas para se suportar, menos ainda para se ocultar — todo o idealismo é mentira perante o necessário —, mas para amar...”

Aos que se interessam por explorar as diversas aproximações temáticas entre Rilke e Nietzsche, vale a pena conferir o ensaio de Kaufmann. Ainda que antigo, o texto impressiona pelo seu virtuosismo ao lidar com dois dos maiores autores do pensamento e da literatura em língua alemã.

Confesso-me apenas insatisfeita com a sua caracterização da relação entre o poético e o filosófico. Ora, apesar de todas as semelhanças entre Rilke e Nietzsche, o fato é que o texto de Rilke enquanto poeta parece-me apenas sugestivo, ao passo que o de Nietzsche apresenta-se fundamentado em um robusto aparato conceitual.

Portanto, ao invés de adotar uma posição de ser possível a convergência entre o poético e o filosófico, eu ainda encontro uma centelha de verdade na provocação do filósofo Martin Heidegger de que, embora essas duas expressões estejam intimamente relacionadas na linguagem, entre elas, ao mesmo tempo, percebe-se um abismo.

Algo como o espaço que separa as cordas do violino com as quais Rilke compara os amantes em “Canção de Amor”: “Pois o que nos toca, a ti e a mim, / isso nos une, como um arco de violino / que de duas cordas solta uma só nota”.

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