Pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (Ibre/FGV), Samuel Pessôa avalia que a economia brasileira deve enfrentar, ao longo do terceiro mandato do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT), momentos de estresse por causa da política fiscal. Ele enxerga uma lógica na qual o presidente é o árbitro de um cabo de guerra entre o grupo político, que deseja ampliar os gastos, e a Fazenda, “que quer colocar um pé no freio”.
“Quando a situação - via resposta do mercado - começa a ficar ruim, o presidente dá mais poder para a Fazenda. Quando nós estamos num período de bonança no mercado, o núcleo político vai ficando mais forte. É essa a economia política que vai vigorar até o final do mandato”, afirma o economista. “Ou seja, se não tiver nenhum estresse, eles vão gastando mais, até uma hora em que as pessoas começam a fazer conta, se assustam e têm um estresse.”
Pessôa projeta que a dívida do País vai crescer 10 pontos até 2026, o que deve empurrar um duro ajuste das contas públicas para o próximo governo.
“Se o Lula for reeleito para um quarto mandato, a gente pode dizer que o quarto mandato dele vai ter certa semelhança com o segundo mandato de FHC”, diz. “A agenda de ajuste fiscal no próximo mandato vai ser fortíssima, porque o espaço que nós vamos ter para continuar com o endividamento vai ser bem menor.”
A seguir, os principais trechos da entrevista concedida ao Estadão.
Eu gostaria de começar respondendo a outra pergunta: o que o governo não deve fazer? A regra fiscal que ele criou prevê o não atingimento da meta. Ou seja: não atingir a meta não é nenhum problema maior, porque a regra já foi construída com a hipótese de que, eventualmente, a meta não seria atingida. E, se a meta não for atingida, tem um redutor maior para o teto dos gastos que vigorará no ano subsequente. Então, o sistema é consistente. As pessoas que pensaram na regra pensaram de forma consistente. Não vejo problema em descumprir a meta.
Descumprir a meta não é descumprir o marco regulatório fiscal. O problema é ele (governo) descumprir o marco ou mudar a meta. Por que precisa mudar a meta? A regra que ele mesmo bolou já prevê o não atingimento da meta. Então, não tem motivo para mudar (meta). A primeira informação importante é que ele não deve mexer em nada, não deve mexer na regra que criou, não deve mexer na meta que criou, e não deve perseguir a meta a qualquer preço.
É ótimo que o ministro (Fernando Haddad), o Ministério (da Fazenda) e o governo estejam se esforçando para fechar oportunidades de planejamento tributário, se esforçando para empregar certas bases tributárias que não estão sendo bem observadas, bem utilizadas. Tudo isso é positivo. O Bráulio Borges, meu colega do Ibre, escreveu um texto recente no qual ele avalia que, como o esforço do governo de aumentar a carga tributária está se dando em novas bases, os impactos ruins sobre o crescimento econômico serão menores. A evidência empírica é que aumento de carga tributária, consolidações fiscais que são feitas com a ampliação de bases, em vez de aumento de alíquotas, são mais bem-sucedidas. Portanto, eu não vejo nenhum problema no esforço do atual governo em explorar novas bases tributárias e combater oportunidades de planejamento tributário e, com isso, se esforçar para ter um ganho de receita ano que vem e contribuir para atingimento da meta. Se a meta não for atingida, segue o jogo. O marco fiscal que ele mesmo desenhou, o arcabouço fiscal, já prevê a possibilidade de a meta não ser atingida.
Eu ouço possibilidades muito ruins que seriam desastrosas, no meu entender. É ele fazer alguma operação de adiantamento de receita, de antecipação de receita. Por exemplo, aquela securitização de receitas de pré-sal, fruto do marco regulatório da partilha. Esse tipo de medida, do ponto de vista da política fiscal, é inócuo.
É uma medida que só transfere receita no tempo, porque antecipar um ganho, uma tributação que você vai receber lá na frente; não aumenta a receita do Estado. E é possível que gere uma queda de receita, porque, ao antecipar, quem antecipa, em geral, antecipa com desconto. Na verdade, é bem possível que gere uma queda de receita. E toda a preocupação com a meta de superávit primário (saldo positivo nas contas públicas) está associada à dinâmica da dívida pública. Quando as pessoas fazem a conta da dinâmica da dívida pública, toda essa receita futura está na conta. Então, antecipar para atingir a meta o ano que vem, de forma artificial, não vai mudar em nada a dinâmica da dívida pública. E, talvez, até piore dependendo de quanto será o desconto que o mercado cobrará para fazer essa antecipação.
É isso. É uma espécie de pedalada. Se fazia isso no passado. Havia umas operações que o Orestes Quércia fez, quando era governador do Estado de São Paulo, e que quebraram o Banespa. Era uma antecipação de receita orçamentária. Esse negócio quebrou o Banespa.
Alguns problemas já foram criados. Por exemplo, a regra de salário mínimo obriga que o gasto cresça mais do que o PIB. Esse é um problema. Tem outro problema de vinculação de saúde e educação ao crescimento da receita. Se a regra fiscal diz que o gasto cresce 70% da receita, mas tem uma outra regra que diz que tem um subconjunto dos gastos que tem de crescer junto com a receita, existe uma inconsistência. Eu também vi no jornal que a ministra da Gestão (Esther Dweck) deseja dar aumento de salário para os servidores no ano que vem e, pelo que eu entendi, acima da inflação. Por outro lado, tem a decisão do governo de que os investimentos são muito importantes e não podem ser cortados. O que sobra?
Talvez, tem alguma coisa que eu não esteja vendo. Mas programas sociais vão ter de aumentar o gasto pela regra de mínimo; salário vai aumentar, porque é uma decisão política que o governo tomou. O mesmo aplica-se para investimento. (O gasto com) Saúde e educação vai ter de aumentar porque a regra constitucional obriga a aumentar.
Em algum momento, o mercado vai realizar que existe uma inconsistência. Quando esse momento chegar, vai ter um estresse. O câmbio vai andar um pouquinho, os juros de longo prazo vão subir mais ainda. Isso deve acontecer em algum momento no primeiro semestre do ano que vem. E quando acontecer, eu não sei qual vai ser a reação do governo. Mas eu acho que é meio da lógica da economia política do governo Lula 3. Esses momentos de estresse têm de ocorrer. Você tem um cabo de guerra entre o grupo político do governo, que quer gastar mais, e a Fazenda, que quer colocar um pé no freio. O presidente é o árbitro desse cabo de guerra.
Quando a situação - via resposta do mercado - começa a ficar ruim, o presidente dá mais poder para a Fazenda. Quando nós estamos num período de bonança no mercado, o núcleo político vai ficando mais forte. É essa a economia política que vai vigorar até o final do mandato. Ou seja: se não tiver nenhum estresse, eles vão gastando mais, até uma hora em que as pessoas começam a fazer conta, se assustam e têm um estresse. E aí tem um estresse, o presidente fica preocupado e vem alguma medida que dá alguma acalmada, dá alguma melhora fiscal. Jogo que segue. A gente vai até 2026 assim.
É grave, porque tudo sugere que a dívida pública nos quatro anos no terceiro mandato do presidente Lula vai crescer em torno de dez pontos porcentuais do PIB. Eu acho que isso até acomoda. Então, não acho gravíssimo. Eu avalio que o presidente Lula consegue terminar bem esse terceiro mandato com essa dinâmica que eu descrevi: de tempos em tempos alguns estresses, alguma resposta da política econômica, e a gente vai nessa dinâmica até o final do terceiro mandato do Lula, mas ele entregará ao sucessor dele um problema. Entregará uma dívida maior. E, evidentemente, o sucessor dele pode ser ele mesmo ou o ministro da Fazenda dele.
Se o Lula for reeleito para um quarto mandato, a gente pode dizer que o quarto mandato dele vai ter certa semelhança com o segundo mandato de FHC.
A agenda de ajuste fiscal no próximo mandato vai ser fortíssima, porque o espaço que nós vamos ter para continuar com o endividamento vai ser bem menor.
Comentários