Entrevista concedida a Veja (12/12/1973), a Maria Helena Dutra(Bidu Sayão), ao visitar o Brasil, depois de 20 anos morando no exterior - Parte 1
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Veja - Sua carreira foi toda feita no exterior. Dez anos na Itália e 22 nos Estados Unidos. Aos brasileiros, restaram apenas poucas récitas e alguns discos importados. Isso não lhe parece injusto para com o seu país?
BIDU - Os brasileiros mais jovens realmente podem reclamar. Os mais velhos, não. Cantei muito por aqui até me despedir fazendo a "Manon" de Massenet, em 1937. E só não voltei ao Brasil porque, depois daquela data, tive uma série de concertos e recitais que não me deram mais um momento livre. Em 1935 e 1936, em todo caso, participei de duas enormes turnês pelo país, indo de Manaus a Santana do Livramento. E não fiquei só nas grandes cidades ou no litoral. Fui a uma infinidade de cidades do interior. Cantei em teatros, em cinemas. E em algumas cidades menores cantei ao ar livre, em cima de um tablado, junto ao piano. Entrava quem podia e quem não podia pagar. Era um negócio muito mais patriótico do que lucrativo. Nas cidades onde não havia hotel,
eu ficava em pensão ou em casas de pessoas que gostavam de música. As duas viagens, porém, foram grandes sucessos. Fico ofendida quando dizem que não sou patriota. Sempre representei minha terra com muita dignidade. Todas as minhas colegas do Metropolitan Opera House eram americanas naturalizadas. Menos eu, que vivo há 35 anos nos Estados Unidos.
Veja - Os críticos costumam dizer que, embora segura e elaborada, sua voz é pequena. E que você teria feito sucesso porque conseguira compensar tudo com sua ótima presença como atriz. Isso é verdade? E o contrário: uma voz excepcional dispensa um bom ator?
BIDU - Nunca. Qualquer arte, para ser bem realizada, precisa ser estudada com aciência e sacrifício. E a arte lírica pressupõe o aprimoramento dos dois dotes: cantor e ator. No meu caso pessoal, eu queria ser primeiramente uma atriz, apesar da influência do meu tio Alberto Costa, médico de profissão, mas músico instintivo que mais tarde compôs várias canções para eu cantar. Na época, porém, por vários preconceitos, considerava-se uma desonra para a família ter uma atriz entre seus integrantes. Ainda mais eu que não tinha pai. Ele morreu quando fiz 4 anos de idade. E minha mãe e meu irmão, quinze anos mais velho, nem discutiam o assunto. Em todo caso, aos 13 anos acompanhei uma colega, Germana Mallet, a suas aulas de canto. Gostei do que vi e ouvi. E resolvi fazer um teste. Eu não tinha voz alguma quando comecei. Os professores me disseram que eu era muito nova ainda, que minha família ia gastar dinheiro à toa. Mas eu insisti, chorei muito, garanti que não me importava com bailes, namorados, festas. E comecei a cantar. De fato, minha voz nunca foi especialmente privilegiada. Mas consegui, primeiro com meus professores, depois com o auxílio de meu segundo marido, o barítono Giuseppe Danise, trabalhar e elaborar minha voz e ser capaz de cantar peças mais difíceis. Acredito que uma atriz precise da mesma elaboração. No meu caso, felizmente, sempre fui uma atriz instintiva. Nunca tive uma lição de cena. Mesmo assim, os maestros quase nunca me corrigiram, porque eu sempre acertava.
Veja - Você voltou ao Brasil para ser presidente de honra do júri de um concurso de canto, no recentemente encerrado Festival Villa-Lobos de 1973. Chegou a sentir nos jovens concorrentes a mesma perseverança e talento que a levaram ao sucesso?
BIDU - A gente sente o cantor quase na primeira audição. Foi o que aconteceu com a russa Nina Lebedeva, vencedora do Festival, solista de várias óperas no Teatro Bolshoi. Aliás, ela continuou a tradição de artistas socialistas vencerem concursos de canto no Brasil. Sem saber português, falando apenas duas frases de francês, Lebedeva apresentou uma "Bachiana nº. 5" de Villa-Lobos, de grande qualidade. Senti que ela tinha escutado minha gravação. Eu me ouvia a mim mesma num estilo que só consegui alcançar ao ser dirigida pelo próprio Villa. O segundo prêmio ficou com a brasileira Marlene Guerra Ulhoa, sem tanta estilo e voz mas com qualidade. E o terceiro com a chilena Mary Ann Fones, a melhor das semifinais, mas muito nervosa nas "Bachianas" da finalíssima.
Veja - Você conhece outra Bidu Sayão entre os novos brasileiros? E música brasileira ainda atrai suas atenções?
BIDU - Eu sempre tive esperança de que alguma jovem brasileira viesse a tomar meu lugar. E quando encontrei Maria Lúcia Godoy, soube que não precisava procurar mais. Sou muito assediada por iniciantes, principalmente brasileiros, e costumo agir impiedosamente porque acho um crime alimentar pretensões. Sem possibilidades,
não dou esperança. Exatamente o contrário aconteceu com a Maria Lúcia - e eu fiquei de boca aberta quando a ouvi cantar. Quanto à música brasileira, eu a considero a mais espontânea, alegre e variada da América Latina, tanto no campo erudito como no popular. No meu tempo, além de Villa, é lógico, interpretei muitas canções de
Francisco Mignone, Ernâni Braga, Lorenzo Fernandes e Barroso Neto. Dos eruditos contemporâneos pouco conheço. Mas existem dois compositores populares brasileiros que, juro, se ainda cantasse, interpretaria com prazer: Antônio Carlos Jobim e Dorival Caymmi.
Veja - Você se confessa sem mágoas e ressentimentos do Brasil. Mas sofreu violenta vaia no Municipal em 1937. Logo após Bidu Sayão se despediu dos palcos brasileiros e terminou sua carreira sem sequer fazer um recital por aqui. Coincidência apenas?
BIDU - Apenas isso. As pessoas que fazem sucesso logicamente têm inimizades. E a vaia do Municipal foi causada e dirigida por Gabriela Besanzoni Lage, uma milionária que morreu na miséria na Itália. Tinha sido uma cantora magnífica, a melhor "Carmen" que já vi. Mas, embora não mais trabalhasse, morria de ciúme de todos os que apareciam. Quando fiz o "Guarani", de Carlos Gomes, no Rio, ela organizou um pessoal para me vaiar. O teatro inteiro, porém, começou a aplaudir e a vaia acabou. Gabriela, inclusive, fugiu do camarote em que se encontrava. Isso, em todo caso, foi uma coisa pequena, sem importância, que recordo sem raiva porque nunca tive inveja de ninguém. Depois dessa vaia ainda cantei, no Brasil, "La Bohème", "Romeu e Julieta", "Manon" e "Pelléas et Melisande". E fui contratada pelo Metropolitan de Nova York. Os compromissos me impediram de voltar. Só retornei ao Brasil em 1952, incógnita, para acompanhar os últimos momentos de vida de meu irmão. Depois, nos Estados Unidos, continuei minha carreira. Sempre pensei em voltar ao Brasil para me retirar. Em 1953, no entanto, deixei o Metropolitan aproveitando o ensejo de cantar novamente a "Manon". Sempre achei que dava sorte começar e terminar uma etapa com a mesma música - e eu tinha estreado no Met com a "Manon". Depois apenas dei concertos até 1958, quando me senti cansadíssima apesar de continuar em boas condições vocais. E numa inspiração de momento decidi acabar com minha carreira em três concertos no
Carnegie Hall, onde cantei a "Demoiselle Elue", de Claude Debussy, a primeira peça que havia cantado nos Estados Unidos. Esta decisão foi causada, também, porque minha mãe já estava muito doente e com 90 anos. E meu marido se queixava muito de solidão, porque eu tinha uma vida de cigana. Considerei, então, que minha família valia mais. Compramos uma casa no Maine e encerrei a vida profissional. Por isso não pude fazer uma programação maior que incluísse o Brasil. Passei então a fumar, a tomar meus coquetéis, o que a profissão antes impedia mas foi muito duro parar. Eu vivia cheia de glórias, circundada de jornalistas. Na hora de me retirar, contudo, de repente ficou tudo vazio. Foi duro, mas escolhi essa solução.
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