Conheça prodígio brasileiro da música clássica que venceu concurso da Orquestra Sinfônica de Londres
Você conhece “bigato de goiaba”? Pois este é o título de uma obra para violão solo com cerca de 30 minutos de duração e dez movimentos, recém-concluída por Rafael Marino Arcaro, 33 anos, encomenda do maior violonista clássico brasileiro da atualidade, Fábio Zanon.
Bigato é o popular bicho-de-goiaba velho conhecido de todo menino que vive fora dos grandes centros. Nascido em Limeira, interior do Estado de São Paulo, próxima a Campinas, Rafael é hoje, no entanto, um cidadão do mundo. Do primeiro mundo, como se dizia antigamente. Acaba de mudar-se para Berlim, mas continua fazendo o doutorado no King’s College em Londres, onde morou nos últimos oito anos.
Julho e agosto estão sendo decisivos em sua vida. Semana passada ele foi anunciado como vencedor do concorridíssimo Concurso de Encomendas da Orquestra Sinfônica de Londres. Ao mesmo tempo, entregou seu Concerto para violino e orquestra encomendado pela Filarmônica de Londres; e concluiu uma sonata para violoncelo e piano, encomenda da Fundação Vaughan Williams.
São feitos extraordinários para um brasileiro que começou a estudar música clássica tarde para os padrões convencionais e que, como um superatleta de ponta, vem quebrando recordes em cima de recordes. Em 2016, por exemplo, quando já se decidira pela composição, e mesmo sem ter feito graduação universitária no Brasil, candidatou-se para graduação mas foi escolhido para o mestrado pela Royal Academy de Londres. “Um salto gigantesco”, diz Rafael ao Estadão, “que agradeço especialmente ao meu professor Paulo Martelli, em São Paulo”.
O bigato, assim como o ambiente rural, ensinou-lhe a importância das raízes. “Cresci em família de classe média num bairro de subúrbio em Limeira. Ninguém da família toca ou se interessa por música clássica. Ao lado da minha casa me encantei com o sítio da minha avó, que tinha cavalo, porco, galinha”. A esta altura, perguntado sobre o bigato-de-goiaba, ele se derrama numa declaração de amor apaixonado pela poesia do mato-grossense Manoel de Barros (1916-2014).
Alguns títulos de suas composições expressam esta empatia, como Infância das Nuvens – três peças para orquestra, opus 15, que foi tocada pela Orquestra de Bolsistas do Festival de Inverno de Campos do Jordão no último dia 29 de julho, na Sala São Paulo. E também o Concerto Apinayé para violão e orquestra, composto entre 2018 e 2019, obra encorpada de 35 minutos, em que o solista não só toca como canta palavras na língua dos indígenas apinajés, da região do Bico de Papagaio, no norte do Tocantins: “Pai! Filho! Filha! Mãe!”
As duas peças sintetizam seu credo como compositor: “Faço milhões de esquemas, cânones, complexidades, mas o resultado não é voltado para o processo, e sim para a sonoridade final”. Em suma, música de carne e osso, “sensual”, “sensorial”, nas suas palavras. “Busco clareza e expressão, gosto de me concentrar em ideias estéticas bem definidas e materiais musicais claramente delineados”.
Aos 33 anos, vive a certeza de quem acredita na busca de uma visão original para o que chama de “identidade artística e temperamento musical brasileiro”, sem esquecer o que qualifica como “a moldura da música contemporânea de concerto”.
Trocando em miúdos, sua música é ao mesmo tempo extremamente sofisticada e acessível a uma escuta mais atenta. “Villa-Lobos não fazia citações, reinventava a música popular e folclórica. É preciso buscar o que é brasileiro para além da música popular”, adota como mantra. Algo na linha do que fez Bela Bartok com a música do leste europeu, arrisco. E ele concorda com gosto.
O compositor inglês George Benjamin, 63 anos, tem sido seu principal mentor no doutorado. “Ele foi aluno de Olivier Messiaen (1908-1992), que foi mestre da vanguarda mais radical de Boulez e Stockhausen, e mesmo assim nunca dobrou-se a ela, manteve a exuberância de sua música”. Não por acaso, embora complexa com seus modos de transposição limitada, a música de Messiaen cultiva dois dogmas que o acompanharam a vida inteira: a fé católica e a paixão pela música dos pássaros.
A música de Rafael atrai porque justamente não se esgota na abstração. Faz questão e mantém como característica básica a motivação de capturar a essência da música brasileira, do que é ser brasileiro e fazer música, não importa o lugar.
Neste momento, ele trabalha na concepção de sua primeira ópera, para dois cantores e 13 instrumentos: “Uma comunidade ribeirinha indígena começa a conviver com a falta de peixe no rio e tenta ampliar seu território para encontrar rios ainda intocados e capazes de lhes fornecer alimento. Tem tudo a ver com o garimpo ilegal na Amazônia”.
Para compreender as matrizes que impulsionam a música deste jovem compositor brasileiro e sua consciência crítica à flor da pele, só relendo Manoel de Barros. Ele dizia que a função do poeta é arejar as palavras para que não morram de clichês. Rafael bem pode estar começando a arejar as sonoridades, para que não morram atoladas na abstração.
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