O lançamento dos "Ensaios Reunidos de Otto Maria Carpeaux" resgata o trabalho de um dos maiores pensadores da cultura que o Brasil já teve. Nascido na Áustria, formado em matemática, física, química, filosofia, letras, e profundo conhecedor de história, sociologia e música, Carpeaux (1900-1978) chegou ao país fugindo do nazismo. Autor da monumental "História da Literatura Ocidental", influenciou toda uma geração de intelectuais e artistas e foi saudado por nomes como Carlos Drummond de Andrade e Oscar Niemeyer como o primeiro a trazer uma visão universal às diferentes formas de nossa cultura, apesar de jamais ter sido reconhecido nos meios acadêmicos brasileiros. Neste texto exclusivo, o escritor Carlos Heitor Cony fala do amigo Carpeaux, que considera "o homem mais importante" que conheceu.
Foi com pavor que me aproximei de Otto Maria Carpeaux, no início dos anos 60, quando entrei para o Correio da Manhã, onde fui inaugurar o que então se chamava de copy desk, e ele era o principal editorialista. Já haviam sido publicados os primeiros volumes de sua monumental História da Literatura Ocidental, eu havia lido a Cinza do Purgatório, Origens e Fins e Livros na Mesa. Considerava o seu prefácio à edição brasileira de Os Irmãos Karamazov tão esclarecedor e importante quanto o próprio texto de Dostoievsky.
Esse monstro ali estava, andando de mesa em mesa, fumando sem parar, esperando a reunião das 18h em que se discutiria a linha do editorial e dos tópicos que compunham a página de opinião, a famosa e histórica página seis do velho Correio.
Eu já havia publicado três romances, Carpeaux fizera resenhas amáveis, tinha por hábito não desestimular os estreantes. Apesar da brevidade dos comentários, foi o primeiro a me colocar (modestamente, é claro) na vertente carioca do romance urbano brasileiro.
Isso tudo me infundia um baita respeito por aquele homem, empertigado apesar dos 60 anos, naturalmente cortês para com todos desde que não lhe pisassem os calos. Sabia-o gago, só falava o necessário - depois aprenderia a lidar com ele. Mas sempre apavorado, porque o peso de sua personalidade era esmagador. Não convivi com reis, papas e poderosos do mundo. Pelos meus critérios, acredito que o homem mais importante com quem lidei foi ele mesmo.
Apesar da cautela inicial que era recíproca, ele não iria criar intimidade com um jovem autor que se iniciava nas letras ficamos amigos e íntimos. Quando a Editora Civilização Brasileira comemorou os 25 anos de sua carreira literária no Brasil, levei um susto quando vi que o livro fora dedicado a seus maiores amigos na época, Ênio Silveira, Nelson Werneck Sodré, Mário da Silva Brito e a mim.
Pressionados pelo regime político vigente naquela ocasião, pedimos demissão mais ou menos ao mesmo tempo. Sem jornal para escrever, aceitávamos convites de estudantes de diversas universidades espalhadas pelo Brasil e assim formamos uma dupla. Durante dois a três anos fizemos palestras em faculdades, igrejas e clubes recreativos. Impressionante como Carpeaux conseguia, usando um mínimo de palavras, dar o seu recado.
No final de cada palestra, havia debates, os estudantes faziam as perguntas, eu respondia com milhões de palavras e não era bem entendido. Carpeaux pensava um pouco, dizia cinco, seis, dez palavras e estava tudo ali. Decididamente, um monstro. Em muitos lugares, nem perceberam o seu folclórico defeito de dicção que, na intimidade, era até escandaloso.
A verba dos estudantes era limitada, em muitas cidades dividíamos o mesmo quarto de hotel. Nunca tive um companheiro mais educado e cortês. Luz apagada, fumando o último cigarro, eu notava que ele se concentrava em alguma coisa antes de dormir. Rezava? Talvez. Sempre suspeitei que Carpeaux tinha um fundo religioso, embora criticasse abertamente todas as religiões. Depois, somando outros detalhes de sua personalidade, tentei esboçar uma teoria para explicar esse tipo de concentração a que ele se entregava não apenas na hora de dormir, mas em momentos específicos de seu dia.
Lá no Correio da Manhã, todos ficávamos intrigados com a mania que ele tinha de pegar um papel e nele colocar nomes e números numa ordem que, aparentemente, parecia uma lista de jogo-de-bicho. Feita a lista, olhava em volta para ver se alguém o observava e discretamente jogava o papel rasgado na cesta. Um colega deu-se ao trabalho de apanhar os fragmentos e recompor a lista. Lá estavam, com a sua inconfundível letra gótica, pequenos blocos de cinco ou seis letras ou números, coisa esotérica, inexplicável.
Quando teve o primeiro enfarte e ficou internado no hospital, Carpeaux pedia a dona Helena, sua mulher, que lhe perguntasse determinadas datas e acontecimentos, aleatoriamente, como numa roleta. Nada respondia, mas ficava concentrado, buscando na memória o que lhe fora indagado.
Juntando todos esses elementos, comecei a perceber (e outros colegas também já tinham chegado à mesma conclusão) de que Carpeaux possuía algum processo mneumônico, aprendido em Cracóvia, em Viena, em Antuérpia, sei lá onde, um macete de scholar com o qual, através de chaves e códigos, penetrava em todos os campos do saber humano.
Para ele, era importante saber quem estava à direita de Napoleão em Marengo, se Ney ou Murat, como importante era saber quantos compassos de uma velha canção medieval foram aproveitados por Wagner na abertura de Os Mestre Cantores.
Como o atleta que diariamente dedica momentos de seu dia para flexionar os músculos, ele praticava esse tipo de atletismo mental, estava sempre aquecido para o que desse e viesse. Daí o meu espanto quando, em 1966, produzindo o documentário Otto Maria Carpeaux - O Velho e o Novo, dirigido por Maurício Gomes Leite, fomos a seu apartamento na Rua Paula Freitas, em Copacabana.
Sua estante de livros era modesta, igual a de um estudante em início de curso superior. Sua discoteca, espantosamente, era diminuta. Filho de um advogado que tocava violino, Carpeaux preferia ler partituras. Perguntei-lhe por quê. Ele respondeu que lendo era mais fácil de guardar do que ouvindo o que nos remete definitivamente para o imenso universo mental que cultivava com suas chaves enigmáticas e códigos de cabala. Sim, um monstro.
A importância de Carpeaux na vida cultural brasileira é um lugar comum crítico-histórico. Carlos Drummond de Andrade e Alceu Amoroso Lima, entre outros, confessaram que através de Carpeaux tornaram-se universais. Não se tratava de um universal geográfico, mas filosófico, o unum aptum inesse pluribus (o um capaz de ser muitos) da lógica aristotélica. Afinal, Carpeaux nascera em Viena, fazia parte de uma geração brilhante, a sua época era a de Freud e Hahn, de Kelsen e Schönberg, de Kokoschka e Kafka.
Com esse último teve um curioso encontro que é uma das páginas mais divertidas que conheço. Os dois encontraram-se numa festa, alguém alertara Carpeaux para que não se aproximasse daquele judeuzinho franzino e triste, tuberculoso óbvio, o mesmo do contágio, na época, era igual ao que hoje a Aids nos causa.
Por mais que Carpeaux fugisse, Kafka dava um jeito de se aproximar, eram dois excluídos dos eventos sociais e o autor de O Processo adivinhava nele um companheiro de solidão. Carpeaux decidiu ir embora, andou um quarteirão e pegou um coletivo. No ponto seguinte, fugindo da mesma festa, entrou Kafka. Sentou-se no mesmo, banco do rapaz a quem fora apresentado havia pouco. Conversaram durante a viagem. Como acontecia com os tuberculosos de então, Kafka tinha a mania de falar baixo, quase ao ouvido do interlocutor.
Os livros dele amontoavam-se na calçada de uma livraria vienense, ninguém os comprava. Foi de Carpeaux o primeiro artigo sobre Kafka, na Holanda. E no Brasil também.
Sua biografia está cheia de lances parecidos.
E todos aqueles que de alguma forma participaram da vida de Otto Maria Carpeaux guardam dele a lembrança de um amigo que nunca se aproveitou da maior sabedoria para impor autoridade. Pelo contrário: sua humildade era o remate de uma sólida personalidade artística e cultural. No primeiro livro que publiquei depois de sua morte, em 1978, coloquei a dedicatória que somente ele poderia me inspirar: "A Otto Maria Carpeaux, memória, lição, saudade".
Trechos
Homero
Toda a literatura grega busca os seus assuntos em Homero. A tragédia grega, tão empenhada em representar a história pós-homérica do assunto homérico - por assim dizer, as conseqüências - a tragédia grega transforma a pedagógica homérica em princípio político. Toda a tragédia grega tem profundo sentido político. A tragédia de Ésquilo representa o último combate do individualismo feudal contra a força normalizadora do Estado. A maior tragédia de Sófocles: a Antígona, representa a contradição entre as leis naturais da família e do indivíduo, e a lei positiva do Estado que pretende proibir o enterro regular dos próprios irmãos, porque inimigos políticos; lei que arranca a Antígona as maravilhosas palavras de consciência individual, que ressoam como presságio do Evangelho: "Não para odiar com os outros, mas para amar com os outros, foi que nasci".
“O Sol de Homero", Origens e Fins
O reino da opinião
A moda, diz Leopardi, é a irmã da morte: ameaça a permanência até das estátuas, das pedras. Depois de Keynes, a própria ciência da economia política está ocupada em explicar, justificar e determinar a instabilidade dos valores monetários. Com estes, começam a vacilar os valores morais. Os sistemas filosóficos transformam-se em meras opiniões. Mas, em compensação, as opiniões revelam-se capazes de usurpar o papel das religiões.
"Retrato de meio século", Retratos e Leituras
Os ensaios reunidos
Um trabalho de arqueólogo da escrita aliado à admiração por um autor desaparecido das estantes das livrarias por negligência dos editores. O resultado da dupla motivação de Olavo de Carvalho é o volume de 1.200 páginas Ensaios Reunidos de Otto Maria Carpeaux, lançado pela editora Faculdade da Cidade em parceria com a Topbooks.
Antes do exílio no Brasil, Carpeaux foi chefe de gabinete do primeiro-ministro austríaco Dolfuss, que utilizou o livro de seu subordinado A Missão Européia da Áustria para delinear sua política externa. Perseguido pelo horror nazista, após a deposição e assassinato de Dolfuss, Carpeaux foi preso e viu sua mulher ser torturada, cena que o marcaria para sempre, e que deixaria como seqüela sua proverbial gagueira. Apesar da vastíssima cultura, no Brasil Carpeaux inicialmente teve de se contentar com um emprego numa biblioteca perdida no interior do Paraná. Em 1942, mudou-se para o Rio de Janeiro e começou seu trabalho na imprensa. "Resolvi editar as obras de Carpeaux por raiva da forma como este país tratou um homem especial", diz Carvalho.
Para a edição, ele garimpou ensaios de crítica literária nos seis livros de Carpeaux sobre o tema, lançados de 1942 a 1960. Mas garimpou bem mais: além dos brilhantes prefácios que o pensador-jornalista naturalizado brasileiro escreveu, que servem como ensaios à parte, há, na seção "Dispersos", textos de Carpeaux desconhecidos até dos fãs mais ardorosos. É o caso de um ensaio sobre o poeta Murilo Mendes, publicado em 1941 numa revista de Recife.
A coletânea é composta por livros de enorme importância histórica e crítica para o Brasil dos anos 40, época em que obras fundamentais como a de Franz Kafka eram inteiramente desconhecidas. E que continuam importantes para o Brasil dos anos 90. Detalhe importante: nenhum dos livros de Carpeaux que constam da ampla coletânea havia sido reeditado. O mais famoso e importante é o que abre a compilação, Cinza do Purgatório, conjunto de artigos publicados no Correio da Manhã, entre os quais destacam-se textos sobre o historiador suíço Jakob Burckhardt, criador do conceito de Renascimento. Outro destaque é o ensaio A Idéia de Universidade e as Idéias das Classes Médias, que descreve a decadência da universidade ao longo da história Ocidental. Entre os nomes freqüentes no repertório do austríaco estavam Max Weber, Benedetto Croce e Jakob Wasserman, autor de O Enigma de Kaspar Hauser. Continuação de Cinza do Purgatório, Origens e Fins traz mais artigos de jornais. Carpeaux conseguiu feitos como destrinchar a obra de Graciliano, Ramos em sucintas cinco páginas. "No ensaio sobre Graciliano, é notável como Carpeaux descobre o segredo de um dos enigmas do autor de São Bernardo sua estranha técnica em que o narrador se divide em três planos: aquele que sofre os acontecimentos, o que narra os fatos e um terceiro, uma supraconsciência, do personagem, que se aproxima das idéias do próprio Graciliano", explica Carvalho. Entre os prefácios recolhidos, há os excepcionais sobre Ibsen e sobre Os Irmãos Karamazov, de Dostoievsky. Ensaios Reunidos de Otto Maria Carpeaux contém ainda os livros Respostas e Perguntas e Retratos e Leituras, ambos de 1953, Presenças, de 1958, e Livros na Mesa, de 1960.
Ensaios Reunidos de Otto Maria Carpeaux. Editora Faculdade da Cidade em parceria com Topbooks
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