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Ugo Giorgetti - Parte 1

BRAVO!: O que o motivou a fazer Boleiros?

UGO GIORGETTI: Talvez eu tenha começado a pensar nesse filme aos cinco anos de idade, quando passei a gostar de futebol. O futebol é a única coisa que percorre a minha vida inteira, que eu não abandonei e que não me abandonou. Por isso, Boleiros talvez seja o meu filme mais natural. É uma tentativa de investigar quem são essas pessoas que jogam bola e que ocupam tanto do nosso imaginário, do nosso cotidiano. Vemos o espetáculo, mas conhecemos muito pouco do ator. Na verdade, essas pessoas jogam futebol fora do campo. Obviamente, você vai ver nesse filme algumas incursões dentro de campo, mas verá mais o que os jogadores são fora de campo. Em última instância, o filme é uma tentativa de investigar quem nos somos.


Ao fazer filmes que expressam uma preocupação com o universo do homem comum você não vai na contramão do cinema brasileiro, que costuma se interessar pelos grandes temas e personagens da literatura e da história?

Não sei se é um problema do cinema ou é um problema meu de não fazer esse tipo de filme. Mas o fato é que me dá a impressão de que o cineasta brasileiro, de uma maneira geral, precisa ser alicerçado, precisa escolher um tema "nobre" para adquirir respeitabilidade. Ele escolhe o livro de algum autor consagrado, importante ou cult e passa para o cinema. Isso significa ter a maior preocupação histórica, ser um ser político... Se você vai falar de Graciliano Ramos, suspeita-se, pelo menos, que você tenha lido Graciliano Ramos. Às vezes, penso que o cineasta tem dificuldades em se colocar como responsável total pela obra, de dizer: olha, esse aqui é um roteiro meu, eu estou falando sobre a minha rua, e tudo bem. Apesar de algumas pessoas fazerem isso honestamente, não vejo nenhuma função. Primeiro, porque, se é um grande livro, ele tem uma linguagem complexa. Segundo, a quem serve esse trabalho? Não serve ao cinema, provavelmente, e não serve ao público, porque ele vai ver uma obra que em 90% dos casos é inferior ao original. Serve muito menos à literatura. Mas é ótimo para a mídia se ocupar. Essa tendência do autor de buscar um aliado intelectualmente forte para lhe fazer companhia na sua própria obra talvez seja uma influência francesa. Os franceses, principalmente o pessoal do Cahiers du Cinema, têm uma reverência extremada à literatura. Lá é compreensível. Mas no Brasil, tirando alguns gigantes evidentes da nossa literatura, do resto um cineasta de talento pode se ombrear tranqüilamente. É por acreditar nisso que eu me ocupo das pessoas comuns e tenho esse atrevimento de me colocar sozinho falando de temas não muito avalizados pela intelectualidade.

Seus personagens são tipos comuns que conseguem ter um sotaque natural. Como você os constrói?

Só aparentemente esses personagens são comuns. Eu trabalho muito com jogadores de futebol, de sinuca, com ex-boxeadores. Agrada-me esse tipo de pessoa que não interessa a ninguém, mas, na verdade, é alguém. Os personagens de Festa, por exemplo, são "alguém" e inclusive se acham "alguém". Ao mesmo tempo, eles estão perdidos na massa. O jogador de futebol é um pouco isso: é um sujeito que só interessa quando é um ídolo, senão é só um sujeito que vive no meio de uma selva de jogadores. Mas para ele, ele é sempre uma pessoa que tem uma determinada habilidade incomum, só dele. Quanto ao sotaque, eu penso que o cinema é uma arte naturalista. Temos de acreditar naquilo que está na tela. O sotaque é uma exigência do personagem. Acreditamos no que estamos vendo se o ator fala como o personagem exige que fale. O que acontece às vezes é que o diretor pega o ator errado. Talvez até por razões erradas: porque o cara é da Globo, está fazendo uma novela... E esse particular ator não tem a habilidade de ter esse sotaque. É melhor escolher o ator certo.

Como você se situa no contexto do cinema brasileiro? E o que acha do momento atual?

Penso que vou continuar à margem, porque tenho uma trajetória muito grande na publicidade, e continuo envolvido com ela. Embora eu realmente tenha partido, já há alguns anos, para o longa-metragem. Isso me atirou para um determinado lugar no cinema - que eu nem sei qual é, mas não é no centro. Estou plenamente consciente, não reclamo do fato de eu ser uma figura estranha nessa coisa toda do cinema no país. Quanto ao cinema brasileiro, eu acho que a gente tem de refletir. O que está havendo é um aumento de produção de filmes. Isso não significa que o cinema brasileiro está se reerguendo. Significa: estamos fazendo mais filmes. Não estamos exibindo mais filmes, exibindo melhor, ou sendo capazes de ocupar nossas telas. Não. O cinema tem uma parte que interessa à mídia, mais superficial, que é o glamour: o mundo dos atores e do diretor. Só que o cinema não é feito só de atores e diretor. Às vezes, eles são a menor parte. Cinema é feito de laboratório de som, de trucagem, de efeitos especiais, de maquiagem. E essas atividades, sem as quais você não faz nada, estão sucateadas no Brasil. Isso é muito perigoso, porque você não faz cinema brasileiro indo revelar seu filme em Nova York. Aliás, só faltava essa para completar o círculo diabólico: além de as telas serem ocupadas pelo cinema americano, a gente vai ainda fazer o filme lá. Quer dizer: nós estamos remetendo dinheiro em duas fontes. Esse assunto precisa entrar em discussão. Temos de resolver o problema da distribuição, de ocupação de telas e de relações com a televisão - que é terrível e sequer se toca nesse assunto. Em qualquer lugar do mundo o cinema tem o apoio da televisão. No Brasil, é diferente. Parece que agora a Globo, em vez de se aliar ao cineasta independente, vai produzir filmes. A TV, que é uma concessão pública! Esse tipo de poder é inconcebível. Na França, daria cadeia só de pensar. O reerguimento do cinema brasileiro é positivo, mas ele pode ser um daqueles surtos de crescimento que houve no passado, e que não deram em nada.

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