Carlos Heitor Cony é um homem com alguma tranqüilidade: acredita que escrever livros não é nenhum crime, não mancha a biografia de um sujeito, portanto ele não precisa pedir perdão. Cony é um dos mais prolíficos escritores brasileiros: um ano e meio depois de lançar O Piano e a Orquestra, que seguiu de imediato o memorialístico Quase Memória, ele volta com nova obra, definindo-se e definindo cada ser humano como um poeta trágico em potencial, graças à santa capacidade de escolha entre bem e mal. Volta nas páginas de A Casa do Poeta Trágico, seu primeiro romance narrado na terceira pessoa do singular, com um narrador que conta a história sem participar dela, ao contrário dos vários outros narradores em forma de eu que pontilham seus outros livros. Neste, o escritor-jornalista desenvolve sua história em torno de dois personagens, Augusto e Mona, que iniciam um romance quando ele já está com 46 anos, e ela com 6 .
A casa, a poesia e a tragédia não são exclusivas: "Qualquer homem é uma casa habitada por um poeta. Se não fosse assim, ele seria uma coisa, um animal. É poeta porque pode escolher o que é bom e o que é mau, a melhor comida, o melhor poema, a melhor ideologia". Sua confessa visão trágica da vida explica o hiato de 23 anos (entre 1972 e 1995) em que Cony nada escreveu, depois de lançar romances praticamente todo ano desde a estréia em 1958 com O Ventre. O ânimo da volta à literatura continua: atualmente, ele guarda projetos futuros, como o romance ainda em embrião, que se chamará Missa para o Papa Marcelo, título da obra de Palestrina, considerado o precursor da era moderna na música.
O tal hiato de silêncio literário, Cony o vê como uma extenuação causada pelo romance-testamento Pilatos (1974), espécie de grito literário que ele considera seu melhor livro. "Fiquei 23 anos sem escrever nem um livro. E daí? Posso ficar mil anos escrevendo, se a política deixar. Não é apenas demonstração de potência, não. É que não vejo nada demais, não levo tão a sério esse negócio, e não tenho a obrigação de ser bom", diz o escritor, que concedeu essa entrevista exclusiva a BRAVO!.
BRAVO!: De onde vem esse nome cheio de ressonâncias. A Casa do Poeta Trágico?
Carlos Heitor Cony: Na primeira vez em que eu fui a Pompéia, no início dos anos 60, entre as muitas casas que vi lá, uma tinha escrito na fachada: "Casa do Poeta Trágico". Sempre quis fazer um livro com esse título. Essa casa é mais famosa pelo mosaico no chão, onde se lê: "Cave canem", ou seja, "cuidado com o cão", que virou exemplo didático do acusativo do latim. Na verdade, ali não morava exatamente um poeta, mas um ensaiador de teatro, o que hoje se chama um diretor. E como havia dois tipos de teatro na Grécia, o trágico e o cômico, aquela era a Casa do Poeta Trágico. De fato para mim qualquer homem é uma casa, que é o seu corpo, e essa casa é habitada por um poeta. Sempre vi o homem como um ser trágico. A vida é trágica, e trágica é toda e qualquer pessoa: eu, você, o Hitler, o Lula, a Lady Di, os paparazzi. Nosso problema é descobrir, desencavar o poeta. E a casa é o resto, é o que sobra quando morremos, é o corpo, a carcaça. Então, compus o livro dividindo-o em três partes: o poeta, o trágico e a casa.
Já existe algum projeto de livro novo?
Há muito tempo também penso em fazer um livro chamado Missa para o Papa Marcelo. É o título da primeira música com contrapontos e polifonias, que tornaria possível a criação da música moderna, inaugurando uma linhagem nova e tirando o homem da linearidade artística, no campo musical. Essa transformação corresponde à invenção da perspectiva na pintura, que até então era bidimensional. Mas Giotto, Michelangelo, Leonardo da Vinci e outros incorporaram a terceira dimensão à pintura, e isso ocorreu várias décadas antes da revolução de Palestrina na música. A missa é uma espécie de composição. Tive a idéia desse futuro livro a partir do personagem principal do romance Doutor Fausto, de Thomas Mann, um músico, um artista que vai à cidade de Palestrina, onde viveu o compositor. E é ali que faz o pacto com o diabo, que não é nenhum Mefistófeles gótico, mas é um homem comum, um banqueiro. Mann escolheu a cidade onde a música moderna nasceu para encenar o teatro da venda da alma ao demo.
Esse é seu primeiro romance na terceira pessoa. Foi difícil a escrita?
Foi dificílimo. O Quase Memória foi em primeira pessoa, embora o narrador, eu, seja um personagem secundário, o protagonista mesmo é meu pai. Isso é um truque que dá muito certo, basta lembrar que o romance Moby Dick, que é um clássico, é narrado pelo Ismael, mas o personagem principal é na verdade o capitão Ahab, e a própria baleia branca, é claro. Esse A Casa do Poeta Trágico é na verdade um grande flashback que ocorre ao longo de uma única noite em que Augusto e Mona se reencontram, depois de anos separados. Gosto de histórias que se desenrolam num curto período de tempo, nesse sentido sou joyceano, pois foi Joyce que criou o truque ao fazer seu enorme romance Ulisses, onde narra apenas um dia na vida do personagem. Meu livro começa numa noite. Uma mulher, Mona, chega de Milão supostamente respondendo à chamada do marido, mas na verdade para vê-lo de novo. Entre os dois há o cão Segredo. Ela voltou na verdade para vê-lo decadente, ele está na cadeira de rodas, ela quer ver sua destruição. Mas há também uma gratidão por ele ter lhe ensinado muitas coisas, ele que era um homem de 46 anos quando a conheceu, ela tendo só 16. Ao longo do caso amoroso entre os dois, vamos percebendo que são na verdade dois blefadores, são personagens estranhos, amorais, muito antipáticos.
O sr. é um dos mais produtivos escritores brasileiros. Como consegue escrever tanto mantendo-se ainda jornalista?
Escrevo diariamente, toda manhã, estou sempre fazendo romances. Consegui me organizar há algum tempo por isso e penso em forma de histórias. Preciso de um tempo mínimo para formalizar o que penso num papel. E mesmo nesses 23 anos em que passei sem escrever, a cada dia eu pensava ou vivia uma história nova. Só não formalizava em livros. Nesse A Casa do Poeta Trágico eu podia ter seguido 20 caminhos diferentes. E isso não é demonstração de potência, não. Se quiserem, eu esqueço tudo e começo a escrever 20 romances de novo, não há problema. Não levo isso tão a sério, também não tenho obrigação de ser bom. Não cometi nenhum crime. Se a polícia deixar, continuo escrevendo livros.
Seu crime mais perfeito, a seu ver, foi o romance Pilatos?
Pilatos é um livro-testamento. Escrevi aquilo para ninguém me perguntar mais nada: lavei minhas mãos. Se você pensar bem, Pilatos é um personagem histórico enigmático, é aquele que lava as mãos, que tenta passar inocente para a história, sair da história. Mas ele não conseguiu, pois neste exato instante em que conversamos tem alguém rezando o catecismo: "E padeceu sob Pôncio Pilatos..." Ele foi o personagem que viu chegar o tal preso de nome Cristo, que ele não sabia se era louco ou charlatão, e teve de decidir sobre sua execução. Há aquele diálogo em ele pergunta a Cristo: "Você é rei?", e Cristo: "Meu reino não é deste mundo. Sou do reino da verdade". Aí, Pilatos faz uma pergunta que mostra como não era nenhum tolo: "Mas, e o que é verdade?". Escrevi esse livro para mostrar que não era obrigado a droga nenhuma, nem a ser um bom pai, nem um bom marido, bom filho, dei uma banana e segui em frente. Tentei responder a essas perguntas básicas de toda filosofia: De onde vim? O que sou? Para onde vou? Eu sou Pilatos. Não escrever durante 23 anos é um ato de Pilatos. Vender ou não a alma, esse é um problema dos outros. Na verdade, o lugar onde me senti mais livre na vida foi minha primeira noite na prisão.
O sr. se refere à prisão de 1965?
Sim, pela primeira vez, eu estava no lugar certo na hora certa. Se eu estivesse em liberdade é que estaria errado. Tive várias prisões mas a mais divertida foi a de 1965, por causa do protesto contra a OEA (Organização dos Estados Americanos). Fomos chamados de "Octeto da Glória", pois fomos presos diante do Hotel Glória e ficamos 17 dias na prisão debatendo muito, em clima de efervescência: eu, Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade, Flávio Rangel e muitos outros. Era uma festa constante, mas só porque a ditadura ainda não tinha know how de tortura, ainda não estava lutando contra nenhum terrorismo. Eles ficavam sem jeito de cometer violências contra a gente. Toda noite alguém expunha algum assunto, Antônio Callado falou sobre jornalismo, eu, sobre literatura, Glauber estava esboçando Terra em Transe. Aliás, Quarup, do Callado, Terra em Transe e o meu romance Pessach: a Travessia surgiram juntos, em 1967, e creio terem sido, os três, frutos dessa prisão em comum. Coincidência ou não, são três obras que dialogam entre si, são três visões diferentes do mesmo problema.
A casa, a poesia e a tragédia não são exclusivas: "Qualquer homem é uma casa habitada por um poeta. Se não fosse assim, ele seria uma coisa, um animal. É poeta porque pode escolher o que é bom e o que é mau, a melhor comida, o melhor poema, a melhor ideologia". Sua confessa visão trágica da vida explica o hiato de 23 anos (entre 1972 e 1995) em que Cony nada escreveu, depois de lançar romances praticamente todo ano desde a estréia em 1958 com O Ventre. O ânimo da volta à literatura continua: atualmente, ele guarda projetos futuros, como o romance ainda em embrião, que se chamará Missa para o Papa Marcelo, título da obra de Palestrina, considerado o precursor da era moderna na música.
O tal hiato de silêncio literário, Cony o vê como uma extenuação causada pelo romance-testamento Pilatos (1974), espécie de grito literário que ele considera seu melhor livro. "Fiquei 23 anos sem escrever nem um livro. E daí? Posso ficar mil anos escrevendo, se a política deixar. Não é apenas demonstração de potência, não. É que não vejo nada demais, não levo tão a sério esse negócio, e não tenho a obrigação de ser bom", diz o escritor, que concedeu essa entrevista exclusiva a BRAVO!.
BRAVO!: De onde vem esse nome cheio de ressonâncias. A Casa do Poeta Trágico?
Carlos Heitor Cony: Na primeira vez em que eu fui a Pompéia, no início dos anos 60, entre as muitas casas que vi lá, uma tinha escrito na fachada: "Casa do Poeta Trágico". Sempre quis fazer um livro com esse título. Essa casa é mais famosa pelo mosaico no chão, onde se lê: "Cave canem", ou seja, "cuidado com o cão", que virou exemplo didático do acusativo do latim. Na verdade, ali não morava exatamente um poeta, mas um ensaiador de teatro, o que hoje se chama um diretor. E como havia dois tipos de teatro na Grécia, o trágico e o cômico, aquela era a Casa do Poeta Trágico. De fato para mim qualquer homem é uma casa, que é o seu corpo, e essa casa é habitada por um poeta. Sempre vi o homem como um ser trágico. A vida é trágica, e trágica é toda e qualquer pessoa: eu, você, o Hitler, o Lula, a Lady Di, os paparazzi. Nosso problema é descobrir, desencavar o poeta. E a casa é o resto, é o que sobra quando morremos, é o corpo, a carcaça. Então, compus o livro dividindo-o em três partes: o poeta, o trágico e a casa.
Já existe algum projeto de livro novo?
Há muito tempo também penso em fazer um livro chamado Missa para o Papa Marcelo. É o título da primeira música com contrapontos e polifonias, que tornaria possível a criação da música moderna, inaugurando uma linhagem nova e tirando o homem da linearidade artística, no campo musical. Essa transformação corresponde à invenção da perspectiva na pintura, que até então era bidimensional. Mas Giotto, Michelangelo, Leonardo da Vinci e outros incorporaram a terceira dimensão à pintura, e isso ocorreu várias décadas antes da revolução de Palestrina na música. A missa é uma espécie de composição. Tive a idéia desse futuro livro a partir do personagem principal do romance Doutor Fausto, de Thomas Mann, um músico, um artista que vai à cidade de Palestrina, onde viveu o compositor. E é ali que faz o pacto com o diabo, que não é nenhum Mefistófeles gótico, mas é um homem comum, um banqueiro. Mann escolheu a cidade onde a música moderna nasceu para encenar o teatro da venda da alma ao demo.
Esse é seu primeiro romance na terceira pessoa. Foi difícil a escrita?
Foi dificílimo. O Quase Memória foi em primeira pessoa, embora o narrador, eu, seja um personagem secundário, o protagonista mesmo é meu pai. Isso é um truque que dá muito certo, basta lembrar que o romance Moby Dick, que é um clássico, é narrado pelo Ismael, mas o personagem principal é na verdade o capitão Ahab, e a própria baleia branca, é claro. Esse A Casa do Poeta Trágico é na verdade um grande flashback que ocorre ao longo de uma única noite em que Augusto e Mona se reencontram, depois de anos separados. Gosto de histórias que se desenrolam num curto período de tempo, nesse sentido sou joyceano, pois foi Joyce que criou o truque ao fazer seu enorme romance Ulisses, onde narra apenas um dia na vida do personagem. Meu livro começa numa noite. Uma mulher, Mona, chega de Milão supostamente respondendo à chamada do marido, mas na verdade para vê-lo de novo. Entre os dois há o cão Segredo. Ela voltou na verdade para vê-lo decadente, ele está na cadeira de rodas, ela quer ver sua destruição. Mas há também uma gratidão por ele ter lhe ensinado muitas coisas, ele que era um homem de 46 anos quando a conheceu, ela tendo só 16. Ao longo do caso amoroso entre os dois, vamos percebendo que são na verdade dois blefadores, são personagens estranhos, amorais, muito antipáticos.
O sr. é um dos mais produtivos escritores brasileiros. Como consegue escrever tanto mantendo-se ainda jornalista?
Escrevo diariamente, toda manhã, estou sempre fazendo romances. Consegui me organizar há algum tempo por isso e penso em forma de histórias. Preciso de um tempo mínimo para formalizar o que penso num papel. E mesmo nesses 23 anos em que passei sem escrever, a cada dia eu pensava ou vivia uma história nova. Só não formalizava em livros. Nesse A Casa do Poeta Trágico eu podia ter seguido 20 caminhos diferentes. E isso não é demonstração de potência, não. Se quiserem, eu esqueço tudo e começo a escrever 20 romances de novo, não há problema. Não levo isso tão a sério, também não tenho obrigação de ser bom. Não cometi nenhum crime. Se a polícia deixar, continuo escrevendo livros.
Seu crime mais perfeito, a seu ver, foi o romance Pilatos?
Pilatos é um livro-testamento. Escrevi aquilo para ninguém me perguntar mais nada: lavei minhas mãos. Se você pensar bem, Pilatos é um personagem histórico enigmático, é aquele que lava as mãos, que tenta passar inocente para a história, sair da história. Mas ele não conseguiu, pois neste exato instante em que conversamos tem alguém rezando o catecismo: "E padeceu sob Pôncio Pilatos..." Ele foi o personagem que viu chegar o tal preso de nome Cristo, que ele não sabia se era louco ou charlatão, e teve de decidir sobre sua execução. Há aquele diálogo em ele pergunta a Cristo: "Você é rei?", e Cristo: "Meu reino não é deste mundo. Sou do reino da verdade". Aí, Pilatos faz uma pergunta que mostra como não era nenhum tolo: "Mas, e o que é verdade?". Escrevi esse livro para mostrar que não era obrigado a droga nenhuma, nem a ser um bom pai, nem um bom marido, bom filho, dei uma banana e segui em frente. Tentei responder a essas perguntas básicas de toda filosofia: De onde vim? O que sou? Para onde vou? Eu sou Pilatos. Não escrever durante 23 anos é um ato de Pilatos. Vender ou não a alma, esse é um problema dos outros. Na verdade, o lugar onde me senti mais livre na vida foi minha primeira noite na prisão.
O sr. se refere à prisão de 1965?
Sim, pela primeira vez, eu estava no lugar certo na hora certa. Se eu estivesse em liberdade é que estaria errado. Tive várias prisões mas a mais divertida foi a de 1965, por causa do protesto contra a OEA (Organização dos Estados Americanos). Fomos chamados de "Octeto da Glória", pois fomos presos diante do Hotel Glória e ficamos 17 dias na prisão debatendo muito, em clima de efervescência: eu, Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade, Flávio Rangel e muitos outros. Era uma festa constante, mas só porque a ditadura ainda não tinha know how de tortura, ainda não estava lutando contra nenhum terrorismo. Eles ficavam sem jeito de cometer violências contra a gente. Toda noite alguém expunha algum assunto, Antônio Callado falou sobre jornalismo, eu, sobre literatura, Glauber estava esboçando Terra em Transe. Aliás, Quarup, do Callado, Terra em Transe e o meu romance Pessach: a Travessia surgiram juntos, em 1967, e creio terem sido, os três, frutos dessa prisão em comum. Coincidência ou não, são três obras que dialogam entre si, são três visões diferentes do mesmo problema.
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