Lygia está entre os escritores mais premiados do país e é referência obrigatória em qualquer lugar do mundo em que se discuta literatura contemporânea de expressão portuguesa. A Editora Rocco comprou os direitos de 10 de seus títulos. O contrato inclui ainda a publicação de dois inéditos. Segundo o que se comenta no mercado, a transação chegou a R$ 500 mil, um patamar inusual para a literatura nacional. Entre uma tragada e outra de seu insistente cigarro "eu sei que eu não deveria", diz: "Exorbitaram na compra de meu passe, porém não é aquela quantia que foi publicada". Que fosse mais, muito mais. Lygia deveria valer o quanto pesa em invenção e fingimento. E já lá se vai um bom tempo desde que, aos 22 anos, publicou Ciranda de Pedra, livro com o qual, segundo o crítico Antonio Candido, a escritora já atingira "maturidade literária". Abaixo, a entrevista que Lygia concedeu a Revista BRAVO! na Academia Paulista de Letras.
BRAVO!: O que há de especial em seu novo livro?
Lygia Fagundes Telles: Vai se chamar Invenções e Memórias. No próprio titulo do livro está especificado seu gênero. Eu misturo memórias com coisas do imaginário. Junto com a memória multifacetada, outras invenções foram inseridas. Eu não sei se há escritores com ausência de idéias. No meu caso, é demais, elas são muito tumultuadas; às vezes, de uma forma tão intensa, que atrapalham. Muitas vezes, tenho de fazer o possível para não ficar uma coisa caótica.
E de onde vêm essas idéias?
Eu não sei. A minha natureza sempre foi assim. Eu sempre fui muito inventiva, sempre gostei muito de sonho. Neste livro, será possível perceber a menina desde aquele tempo de pequena, analfabeta ainda, que gostava de ouvir as histórias que a babá contava. Normalmente, eram casos de fantasmas e lobisomens. Depois, passei eu mesma a contá-las, muito cedo, ainda antes de saber escrever. As histórias nascem de passagens aparentemente sem importância, mas que, por algum motivo, nós as retemos, e o inconsciente, em determinado momento, as trazem à tona. A criação nasce da vontade da imaginação, a vontade de exorcizar os meus demônios. E a forma de exorcizar os demônios é escrever.
Para o escritor, qual a diferença entre invenção e memória?
No fundo, é uma coisa só. Porque, em muitos episódios do livro O Chão da infância, por exemplo, há uma porção de personagens familiares, minha mãe, meu pai, as pajens, aquelas órfãs que mamãe recolhia em casa e que me contavam histórias, a cachorrada toda com a qual eu convivi. Então todo esse cenário é verdadeiro. Eu tenho um texto que começa assim: "Você gostaria, Lygia, que escrevessem sua biografia?". Eu disse: "Não; pra começar, por que minha biografia? Não sou a Lady Di. Mas, em todo caso, não gostaria jamais que alguém escrevesse minha biografia. Porque as pessoas não sabem nada a meu respeito. Porque eu mesma também não sei."
Algum livro seu tem algo de autobiográfico?
Não. Às vezes, eu apareço nas personagens. Quando me perguntam em que personagem estou, eu não sei. Eu estou em todas e estou em nenhuma. É como aquele jogo de puzzle de minha infância. Você pega as peças e tem de ir juntando, compondo até formar um quadro: uma natureza, uma natureza-morta, um cavalo, uma casa, um castelo, o mar. Se você joga essa caixa ao chão, as peças ficam todas em desordem. Aí tem de recomeçar. De certo modo, enquanto eu escrevo, as palavras são como esses pedaços, essas pequenas lâminas coloridas. As palavras estão todas ali espalhadas. Eu vou encaixando umas às outras, formando um quadro, e essa é uma alegria, mas é sofrimento. Escrever é alegria e é sofrimento também. É a busca...
O novo livro traz alguma inovação estilística em relação aos demais?
Traz sim. Tem a linguagem própria dele. O que é a literatura senão a linguagem? Machado de Assis, Guimarães Rosa... Então esse livro tem uma linguagem própria, que não está nos outros. Não posso dizer a você como ela é porque só quando abrir e ler você vai conhecê-la.
A Sra. escreve com tranqüilidade?
Escrever nesta cidade é estressante e difícil. Você vê, o trânsito é um horror! Grande parte do tempo real se perde em burocracias, em coisas absolutamente ridículas e sem sentido. Isso que me dói, tá entendendo? Olha, devia ser como naqueles tempos antigos, século 19, século 18, quando escritores eram convidados para ir para aqueles castelos lindos! Olhando para aqueles bosques, pássaros, a música tocando, e eles escrevendo... Agora, aqui, é uma luta para você chegar... Eu peço à minha empregada: "Por favor, não me chame ao telefone, agora eu queria ficar quieta". Ela vem, interrompe. Escrever é um trabalho solitário. Escrevendo, você não pode repartir esse trabalho com mais ninguém, nem com nada mais. A solidão ah, eu acho que eu descobri uma coisa ótima, a solidão é muito cara. Você paga um preço muito alto pela solidão. O que é solidão? Não ter barulho... Então você precisa morar num lugar onde não tenha barulho. Se eu fosse jovem, eu arrumava minha sacola, minha mochila, e ia embora. Mas agora é tarde, eu não posso. Eu sou uma pessoa sozinha. Não posso pegar minha mochila feito um jovem e morar, digamos, no Canadá, morar na França, Inglaterra, Estados Unidos. É muito tarde. Eu pretendo, terminando esse livro, arrumar um flat lá no Rio de Janeiro, coisa modesta, mas de onde eu possa ver ao menos um retângulo que seja, do tamanho desse seu gravador já é suficiente, do mar.
A sra. finalmente escreveu seu primeiro livro no computador?
Eu ganhei esse computador e lutei um pouco com ele. Mas, escrevendo este livro, eu não posso pensar em mais nada, e o computador exige uma certa atenção. Eu não posso dar atenção a ele. "Olha aqui eu falo, faz favor, eu estou inteira concentrada aqui na busca das palavras, no artesanato desse ofício". No entanto, o computador, de um certo modo, puxa você pela manga, ele quer a sua atenção. "Ah, então fica quieto aí, meu bem!". Eu lhe dou um beijo e vou pegar minha máquina velha, caindo aos pedaços, pois tenho muita intimidade com ela. Os computadores são caprichosos, são exigentes, são possessivos! Eles querem atenção! Por isso volto à minha velha máquina.
Adotou-se a definição realismo mágico para o seu estilo. A sra. concorda?
Eu concordo, sim. E foi o português Urbano Tavares Rodrigues quem descobriu isso num livro antiquíssimo meu, chamado Histórias do desencontro. Esse livro é tão antigo... Ele sentiu essa característica. Ainda não estava na moda o realismo mágico. Eu fui, de certo modo, uma precursora aqui no Brasil, juntamente com Murilo Rubião. Nós vislumbramos um mundo irreal, fantástico e, ao mesmo tempo, possível. O leitor precisa de um pouco de fantasia.
Já é possível ganhar dinheiro com literatura?
Eu estou agora na Editora Rocco. Eles exorbitaram na compra do meu passe, mas não é aquela quantia que foi publicada. Eu gosto muito da Nova Fronteira, sou muito amiga de seus editores, mas, às vezes, como num casamento, você precisa mudar, renovar. Então, continuo amicíssima deles.
Sempre foi muito difícil viver de literatura no Brasil...
Não é difícil, é impossível. Há raríssimas exceções. Não sei se isso vai mudar. A esperança tem de ser cega. Tenho esperança de que eu ainda possa assistir a essa transformação. Tem de haver fé, as três virtudes teológicas: fé, virtude e caridade.
BRAVO!: O que há de especial em seu novo livro?
Lygia Fagundes Telles: Vai se chamar Invenções e Memórias. No próprio titulo do livro está especificado seu gênero. Eu misturo memórias com coisas do imaginário. Junto com a memória multifacetada, outras invenções foram inseridas. Eu não sei se há escritores com ausência de idéias. No meu caso, é demais, elas são muito tumultuadas; às vezes, de uma forma tão intensa, que atrapalham. Muitas vezes, tenho de fazer o possível para não ficar uma coisa caótica.
E de onde vêm essas idéias?
Eu não sei. A minha natureza sempre foi assim. Eu sempre fui muito inventiva, sempre gostei muito de sonho. Neste livro, será possível perceber a menina desde aquele tempo de pequena, analfabeta ainda, que gostava de ouvir as histórias que a babá contava. Normalmente, eram casos de fantasmas e lobisomens. Depois, passei eu mesma a contá-las, muito cedo, ainda antes de saber escrever. As histórias nascem de passagens aparentemente sem importância, mas que, por algum motivo, nós as retemos, e o inconsciente, em determinado momento, as trazem à tona. A criação nasce da vontade da imaginação, a vontade de exorcizar os meus demônios. E a forma de exorcizar os demônios é escrever.
Para o escritor, qual a diferença entre invenção e memória?
No fundo, é uma coisa só. Porque, em muitos episódios do livro O Chão da infância, por exemplo, há uma porção de personagens familiares, minha mãe, meu pai, as pajens, aquelas órfãs que mamãe recolhia em casa e que me contavam histórias, a cachorrada toda com a qual eu convivi. Então todo esse cenário é verdadeiro. Eu tenho um texto que começa assim: "Você gostaria, Lygia, que escrevessem sua biografia?". Eu disse: "Não; pra começar, por que minha biografia? Não sou a Lady Di. Mas, em todo caso, não gostaria jamais que alguém escrevesse minha biografia. Porque as pessoas não sabem nada a meu respeito. Porque eu mesma também não sei."
Algum livro seu tem algo de autobiográfico?
Não. Às vezes, eu apareço nas personagens. Quando me perguntam em que personagem estou, eu não sei. Eu estou em todas e estou em nenhuma. É como aquele jogo de puzzle de minha infância. Você pega as peças e tem de ir juntando, compondo até formar um quadro: uma natureza, uma natureza-morta, um cavalo, uma casa, um castelo, o mar. Se você joga essa caixa ao chão, as peças ficam todas em desordem. Aí tem de recomeçar. De certo modo, enquanto eu escrevo, as palavras são como esses pedaços, essas pequenas lâminas coloridas. As palavras estão todas ali espalhadas. Eu vou encaixando umas às outras, formando um quadro, e essa é uma alegria, mas é sofrimento. Escrever é alegria e é sofrimento também. É a busca...
O novo livro traz alguma inovação estilística em relação aos demais?
Traz sim. Tem a linguagem própria dele. O que é a literatura senão a linguagem? Machado de Assis, Guimarães Rosa... Então esse livro tem uma linguagem própria, que não está nos outros. Não posso dizer a você como ela é porque só quando abrir e ler você vai conhecê-la.
A Sra. escreve com tranqüilidade?
Escrever nesta cidade é estressante e difícil. Você vê, o trânsito é um horror! Grande parte do tempo real se perde em burocracias, em coisas absolutamente ridículas e sem sentido. Isso que me dói, tá entendendo? Olha, devia ser como naqueles tempos antigos, século 19, século 18, quando escritores eram convidados para ir para aqueles castelos lindos! Olhando para aqueles bosques, pássaros, a música tocando, e eles escrevendo... Agora, aqui, é uma luta para você chegar... Eu peço à minha empregada: "Por favor, não me chame ao telefone, agora eu queria ficar quieta". Ela vem, interrompe. Escrever é um trabalho solitário. Escrevendo, você não pode repartir esse trabalho com mais ninguém, nem com nada mais. A solidão ah, eu acho que eu descobri uma coisa ótima, a solidão é muito cara. Você paga um preço muito alto pela solidão. O que é solidão? Não ter barulho... Então você precisa morar num lugar onde não tenha barulho. Se eu fosse jovem, eu arrumava minha sacola, minha mochila, e ia embora. Mas agora é tarde, eu não posso. Eu sou uma pessoa sozinha. Não posso pegar minha mochila feito um jovem e morar, digamos, no Canadá, morar na França, Inglaterra, Estados Unidos. É muito tarde. Eu pretendo, terminando esse livro, arrumar um flat lá no Rio de Janeiro, coisa modesta, mas de onde eu possa ver ao menos um retângulo que seja, do tamanho desse seu gravador já é suficiente, do mar.
A sra. finalmente escreveu seu primeiro livro no computador?
Eu ganhei esse computador e lutei um pouco com ele. Mas, escrevendo este livro, eu não posso pensar em mais nada, e o computador exige uma certa atenção. Eu não posso dar atenção a ele. "Olha aqui eu falo, faz favor, eu estou inteira concentrada aqui na busca das palavras, no artesanato desse ofício". No entanto, o computador, de um certo modo, puxa você pela manga, ele quer a sua atenção. "Ah, então fica quieto aí, meu bem!". Eu lhe dou um beijo e vou pegar minha máquina velha, caindo aos pedaços, pois tenho muita intimidade com ela. Os computadores são caprichosos, são exigentes, são possessivos! Eles querem atenção! Por isso volto à minha velha máquina.
Adotou-se a definição realismo mágico para o seu estilo. A sra. concorda?
Eu concordo, sim. E foi o português Urbano Tavares Rodrigues quem descobriu isso num livro antiquíssimo meu, chamado Histórias do desencontro. Esse livro é tão antigo... Ele sentiu essa característica. Ainda não estava na moda o realismo mágico. Eu fui, de certo modo, uma precursora aqui no Brasil, juntamente com Murilo Rubião. Nós vislumbramos um mundo irreal, fantástico e, ao mesmo tempo, possível. O leitor precisa de um pouco de fantasia.
Já é possível ganhar dinheiro com literatura?
Eu estou agora na Editora Rocco. Eles exorbitaram na compra do meu passe, mas não é aquela quantia que foi publicada. Eu gosto muito da Nova Fronteira, sou muito amiga de seus editores, mas, às vezes, como num casamento, você precisa mudar, renovar. Então, continuo amicíssima deles.
Sempre foi muito difícil viver de literatura no Brasil...
Não é difícil, é impossível. Há raríssimas exceções. Não sei se isso vai mudar. A esperança tem de ser cega. Tenho esperança de que eu ainda possa assistir a essa transformação. Tem de haver fé, as três virtudes teológicas: fé, virtude e caridade.
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