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UM MUNDO SEM ORQUESTRA?


Grande invenção cultural do século 18, a orquestra sinfônica, com sua centena de músicos regidos pela figura quase mítica do maestro, reinou absoluta no centro da música ocidental durante o século 19, tornando-se o símbolo máximo do refinamento estético. No entanto, a partir do século 20, foi gradativamente perdendo o contato com a realidade e com o público. Hoje, ela vive à margem da dinâmica social e cultural do mundo contemporâneo, amargando prejuízos ao mesmo tempo em que enfrenta o desafio de buscar, sem perder suas características essenciais, novas formas de conquistar novos consumidores.
Os números não são muito animadores. Nos Estados Unidos, nove orquestras sinfônicas fecharam as portas nos últimos meses, e metade das outras 1.200 amargam déficits. Na Europa, dezenas cortam despesas para não falirem. No Brasil, considera-se uma vitória o fato de apenas manterem-se de pé suas poucas instituições, tais como a OSESP, a Sinfônica de São Paulo, que manteve seu orçamento. No mundo, a maioria não tem contrato com gravadoras, e as vendas estacionaram em um dígito apenas. No Brasil, nos áureos anos 80, os clássicos eram 6% das vendas totais de discos, hoje não chegam a 2%.
É um esvaziamento que tem muitas causas. Uma delas, talvez a mais complexa e menos tangível, é a de que os ouvidos contemporâneos estão perdendo sua capacidade de interagir com a música erudita, acostumados que estão, desde que nascem, às mais variadas vertentes da música pop. Nos séculos 18 e 19, quando se fixou o repertório clássico e sua estética, as pessoas dependiam de sons acústicos e de execuções ao vivo para apreciar música e o que ouviam as direcionava mais facilmente para o gosto erudito. Noutras palavras, não havia a massificação proporcionada pela reprodutibilidade técnica, e não havia música para além do convívio humano convívio que é, no fim das contas, a base do surgimento da orquestra.
É este fato que dá sentido à ironia do crítico Douglas McLennan, editor do site de cultura Arts Journal: "Hoje, a música erudita está mais disponível do que em qualquer outra época na história, nos CDs, na Internet, na TV, no rádio e no DVD, além dos concertos. Mas já não é mais uma arte essencial. Você fala atualmente a palavra ‘clássico’ e a pessoa pensa em Rolling Stones e Beatles". Estes são os ouvidos contemporâneos que a música clássica não sabe como conquistar.
Outro aspecto revelador desta situação é a convicção do mundo erudito de que deveria ser ele o detentor do monopólio de divulgar a "boa música" crença nascida com sua hegemonia cultural no século 19. Isto se reflete nos rituais que ainda envolvem a audição das suas peças: não aplaudir entre os movimentos das obras, observar silêncio respeitoso, não fazer ruído algum durante a execução, e vestir-se adequadamente. Tudo isso cria um ambiente intimidador. "São rituais artificiais (...) que só os insiders conhecem", observa Christopher Small, em seu livro Musicking.
E mesmo os "de dentro" têm suas ressalvas. É o que mostra a pesquisa da Associação das Orquestras Norte-Americanas, que congrega 150 sinfônicas. Ela obteve a adesão de 15 delas - entre outras, Filadélfia, Detroit, New World, Saint Louis e Saint Paul num investimento de US$ 10 milhões para entrevistar 25 mil pessoas em 15 cidades. Tudo para conhecer melhor o presente e tentar adivinhar o futuro de suas associadas. A pesquisa mostrou que muitos acham desinteressante e monótono o visual do concerto, e consideram o ambiente pouco acolhedor com seus intervalos curtos entre a primeira e segunda partes. Em artigo recente, Paul Griffiths, crítico do The New York Times, afirmou que as orquestras não reconhecem isso porque "tratam o público como se fosse objeto, dando-lhe apenas o privilégio de consumir".
Outro problema enfrentado pelas orquestras é o enorme descompasso entre o que criam os compositores modernos e atuais e aqui entram nomes como o de Schoenberg (1874-1951) e Pierre Boulez (1925- ), cujas obras são de difícil assimilação, e a capacidade de compreensão do público. Também se acredita, como há cem anos, que obras hoje desconhecidas serão consideradas obras-primas no século 22. Isso é um engano, já que essa lógica funcionou somente até Mahler e Debussy, no início do século 20, porque a linguagem musical era única e tonal. Por isso, quando se apresenta música nova o público tende a desaparecer, ao contrário de outros gêneros, cuja produção se renova mantendo, porém, contato com o público. Sendo assim, o universo da música clássica é obrigado a viver de seus grandes nomes num grau de repetição muito além do desejável. Isso retira dessas obras-primas o poder de perturbação que um dia tiveram."O que uma vez foi lava incandescente, transforma-se em bucrocrático conforto espiritual", diz Small. Ano após ano, apresenta-se o mesmo Bach, o mesmo Brahms e o mesmo Beethoven, despejando no mercado cinqüenta ou cem versões da Quinta ou da Nona. Se isso se justifica pela inegável qualidade dessas obras, por outro lado acarreta um certo engessamento desse universo cultural, criando uma limitação de oferta dentro de um competitivo mercado cultural. Afinal, se para o especialista uma versão difere de outra, para o ouvinte comum ele está ouvindo a mesma coisa, independentemente de quem a interpreta.
Essas difíceis questões colocam as orquestras num aparente beco sem saída, mas, mesmo assim, elas se mexem. No Brasil, a OSESP tem planos de lançar seu selo próprio, a exemplo do que faz há anos a Orquestra Sinfônica de Londres, que já vendeu 250 mil cópias a 4,99 libras, um terço dos preços normais na Inglaterra. E se o sistema de assinaturas anuais afugenta parte significativa do público, há o exemplo da Orquestra de Cincinnati, dirigida pelo estoniano Paavo Järvi, que instituiu novidades como os concertos das quintas-feiras, cujo ingresso inclui um jantar-bufê.
Mas muitos espaços possíveis deixaram de ser preenchidos. François Colbert, em ensaio na Musiques Une Encyclopédie pour le XXIe Siécle, cujo primeiro volume é dedicado às músicas do século 20, e acaba de sair na França em tradução do original italiano de 2001, pergunta: "por que as orquestras não operam uma rádio em suas comunidades, já que este é o principal canal de difusão da música sinfônica?". Em São Paulo, por exemplo, já se fez isso no passado por meio da Rádio Cultura FM mas não se sabe por que, atualmente, nenhum concerto da OSESP é transmitido pela Cultura.
Entretanto, mais do que medidas tópicas de marketing e de mercado, é preciso render-se ao fato de que a orquestra, com seus altos custos de manutenção de salas, músicos e instrumentos, aliados à baixa audiência e a uma mística de superioridade incompatível com a cultura de massas, tornou-se um mamute cultural. Mesmo otimistas como Stephen Cottrell, editor do recém-lançado Cambridge Companion to the Orchestra, que reúne ensaios que tratam desde a questão estética até temas como o uso do rádio pelas orquestras e a criação de selos próprios, ressalva que "para ela sobreviver até o século 22, os enfoques criativos precisam ser a norma, e não a exceção. A orquestra é importante demais para ser encarada apenas como antiguidade cultural por um grupo cada vez menor de historiadores interessados".
As orquestras são importantes, mas, infelizmente, não indispensáveis. A prova maior de que os tempos são outros foi a inusitada atitude de Jay Meetze, diretor da Companhia de Ópera do Brooklyn, que usou, em agosto deste ano, uma orquestra computadorizada para acompanhar os cantores numa montagem da Flauta Mágica, de Mozart. Ele também regeu uma orquestra virtual, em que 27 microfones substituíram os músicos, simulando violinos, madeiras e percussão. Sinal dos tempos ou excentricidade? Seja como for, tudo aponta para um futuro em que orquestras ao vivo apresentando as grandes obras musicais do Ocidente serão, cada vez mais, um raro prazer.


O que ler


Cambridge Companion to the Orchestra, Stephen Cottrell (editor), Cambridge University Press, 312 págs., 45 Libras

Musiques du XXe Siècle (primeiro volume de Musiques - Une Encyclopédie pour le XXIe Siècle), Jean-Jacques Nattiez (editor), Actes Sud, 1.492 págs., 55 Euros

Musicking, Christopher Small, Weyslean University Press, 240 págs., US$20

Pesquisa da Associação de Orquestras Norte-Americanas, no site: www.knightfdn.org

Site de cultura editado por Douglas McLennan: www.artsjournal.com

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