A luta por equidade racial na França e no Brasil tem vários pontos em comum, como a busca por mais oportunidades na educação e no mercado de trabalho, maior integração social e reivindicação por maior representatividade no mercado audiovisual.
É possível fazer essa afirmação a partir do contato com diferentes fontes. Uma delas é o documentário O Panteão das Memórias Negras, do cineasta francês Karim Akadiri Soumaila, que está sendo exibido no Brasil pelas comemorações do Dia da Consciência Negra.
O filme presta uma homenagem à Lei Taubira, promulgada pela ex-ministra da Justiça da França, Christiane Taubira, em 2001, que reconhece a escravidão como crime contra a humanidade. Christiane trabalhou ainda em defesa dos direitos dos homossexuais, para que o casamento entre pessoas do mesmo sexo na França fosse permitido.
O filme é um rico panorama histórico de quase dois séculos sobre os vínculos legais, culturais e sociais da República Francesa com as colônias francesas a partir dos relatos de historiadores, sociólogos, personalidades políticas, artistas, intelectuais e representantes da sociedade civil.
“Quero mostrar que as nossas histórias e as nossas realidades são sensivelmente semelhantes, tendo como ponto de partida a dolorosa história da escravidão”, afirma Karim Akadiri Soumaila. “A luta, na França e no Brasil, permanece a mesma, pela sua integração social e profissional. E isso deve, infelizmente, passar por uma elaboração de leis ou de medidas concretas”, opina.
A trajetória do próprio Soumaila reafirma a proximidade da luta pela equidade no Brasil e na França. Roteirista e diretor de documentários e ficções com quase 30 anos de carreira na televisão francesa, Karim conheceu sua mulher em Paris, vive por aqui há 13 anos e hoje tem uma filha brasileira. Ele trabalhava para emissoras francesas fazendo reportagens especiais sobre a sociedade brasileira e sempre se inquietou com a falta de diversidade em alguns vários setores.
“Quando cheguei ao Brasil em 2009, por exemplo, filmei a São Paulo Fashion Week. E não havia nenhuma modelo negra ou da diversidade nas passarelas. Quando assistia à novela, um bom indicador cultural para um estrangeiro, eu notava poucos protagonistas negros com papéis dignos”, diz.
Homenageada no filme, a ex-ministra da Justiça da França, Christiane Taubira, é uma voz importante mundial na luta contra o racismo. Christiane Taubira Delannon foi deputada da Guiana francesa e Ministra da Justiça da França demaio de 2012 a janeiro 2016, sob a presidência de François Hollande. Em viagem ao Brasil para participar de debates sobre o Mês da Consciência Negra, ela concedeu entrevista exclusiva ao Estadão:
Em 1998, a França comemorou o 150º aniversário da segunda abolição da escravidão nas colônias francesas. Ao não mencionar a primeira abolição, o que inevitavelmente leva a lembrar a restauração da escravidão por Napoleão Bonaparte em 1802. É uma história que abala mitos nacionais. Nesse mesmo ano de 1998, enquanto as autoridades celebravam pomposamente o aniversário do decreto de abolição de 27 de abril de 1848, milhares de pessoas caminhavam pelas ruas de Paris, em silêncio, para assumir e reivindicar pela primeira vez, que eram filhas e filhos de escravos. Fiquei impressionada com esse silêncio, quando há tanto para dizer.
E por esse sofrimento, como se as pessoas não soubessem dizer palavras sobre os fatos, a memória e a profunda dor que tudo isso causa neles. Assim, decidi que, como deputada, no seio das instituições da República, podia agir para que as palavras mais justas e oficiais fossem pronunciadas sobre este crime indescritível.
Foi assim que redigi esta proposta de lei, apresentada em julho de 1998, debatida no Parlamento Francês a partir de Janeiro de 1999 e que se tornou a Lei Taubira em maio de 2001. Por fim, é uma palavra solene e clara, não sobre a abolição, mas sobre o crime. É a ruptura com o longo período de silêncio e depois de glorificação abolicionista.
Esta lei dá estatuto ao crime e contém disposições sobre o ensino, a comemoração oficial, a pesquisa e a cooperação, a organização de eventos no espaço público. Esta lei é a base da criação da Fundação para a Memória da Escravidão.
A presença das pessoas afrodescendentes, quer tenham nascido em França ou tenham vindo de outro país de nascimento, explica-se em grande parte pela história colonial da França, embora haja pessoas negras na França antes do período das conquistas coloniais. O impacto da escravidão está na persistência do racismo e dos preconceitos, que se traduzem em atos maiores de exclusão (vias educativas, emprego, habitação...), uma maior exposição aos perigos, inclusive institucionais (controles policiais frequentes e, por vezes, assassinos...).
Durante os dois anos de debate parlamentar, a tensão era grande em França contra esta proposta de lei. Aliás, os sucessivos governos levaram mais cinco anos a organizar a cerimônia oficial de 10 de maio criada por essa lei. Desde 2006, esta cerimônia realiza-se no Jardim do Luxemburgo, na presença do presidente da República, que profere um discurso na frente de uma escultura dedicada, com exposição, poemas e orquestra filarmônica. Há cada vez mais escolas, faculdades e liceus que participam do concurso da Flamme de l’Égalité (Chama da Igualdade).
Cada vez mais prefeituras organizam eventos no dia 10 de maio. O mês de maio tornou-se o mês da memória. O ensino da escravidão é desigual, mas o tema está presente. Múltiplas iniciativas militantes, artísticas, culturais, contribuem para dar leitura mais consciente dos preconceitos e mecanismos de exclusão que ainda atuam nas instituições públicas, nas empresas, na mídia...
E a nova geração, confrontada com todos esses mecanismos, é cada vez mais ofensiva para combatê-los e cada vez mais engenhosa em seus métodos. Resta, aos que exercem o poder, conceber políticas públicas.
Não se trata de um sonho nem de uma esperança, mas de uma exigência e de um combate. A exigência seria que as instituições públicas parassem de enganar e deturpar os princípios da República e seus princípios de igualdade na cidadania. O combate consiste em agir ou influenciar para que políticas públicas voluntaristas sejam concebidas e aplicadas para uma verdadeira igualdade de todos e todos os cidadãos franceses. Não só perante a lei, mas em relação a todas as oportunidades. A cada um, de acordo com seus talentos e habilidades, não de acordo com sua classe social ou seus privilégios.
Este livro não é centrado na Guiana. A história do tráfico e da escravidão é global e moldou o mundo em que vivemos. Quer se trate do lugar e dos direitos dos povos indígenas; dos direitos dos componentes afrodescendentes e mestiços dos povos das Américas; da presença das línguas europeias nas Américas; das fronteiras (algumas das quais ainda são objeto de contestação) ; da bagagem linguística, cultural, matrimonial, patrimonial que constitui as nossas identidades coletivas... Este livro é sobre isso. E, claro, a minha identidade guianesa tem a marca desta História e contribui para forjar o meu olhar sobre o seguimento que damos a esta História. Isto é, o nosso destino coletivo e comum.
Nós nos conhecemos muito mal, mas não estamos tão distantes culturalmente. Pelo menos, não com os Estados de proximidade. É certo que as colonizações portuguesa e francesa deixaram marcas diferentes nas nossas culturas, línguas e modos de vida. Mas as sociedades não estão congeladas. E o que fizemos de nós mesmos, tanto no Brasil quanto na Guiana, prova que muitas coisas nos são comuns (vocabulário, gastronomia, relação com a Floresta Amazônica...). E as sociedades não têm vocação para se assemelharem.
O racismo é uma monstruosidade. Uma invenção oportunista elaborada para justificar o sistema mercantil que funcionava sobre o tráfico de pessoas e sua redução à escravidão. Os negreiros, armadores, plantadores sabiam perfeitamente que faziam comércio de humanos. Os poderes públicos, monárquicos, também. Para justificar o seu sistema econômico, muito rentável, que alimentou o enriquecimento e conduziu às revoluções industriais europeias, era necessário justificar - antes, durante e depois do Iluminismo - este tráfico de humanos.
A única alternativa era parar esse comércio abominável ou justificá-lo negando a humanidade das pessoas que eles capturavam. Fizeram deles “bens móveis” nos seus Códigos negros, e inventaram as teorias sobre a hierarquia das raças. Daí o racismo. Sem validade científica, sem relevância filosófica. Portanto, não há acomodação aceitável. Encorajo e acompanho os jovens que lutam sem concessões e exigem políticas públicas rapidamente eficazes.
Os desafios são os mesmos em todo o mundo, pois esta História moldou o mundo inteiro e todos os povos são pluralistas. Os países lidam com isso de forma diferente. A França tem dois níveis de desafio: no seu território europeu e nestes territórios chamados Departamentos ultramarinos. Dois desafios, mas um lema: a igualdade. O Brasil também optou pela igualdade e pela não discriminação em sua Constituição. Claramente, cabe aos governos serem fiéis a esses valores, de acordo com sua organização institucional, e cumprir as promessas constitucionais. E certamente não às “populações negras”.
Os “negros” não são uma curiosidade. São cidadãos. O mês da consciência negra diz respeito a todo o Brasil e à sua inteira comunidade nacional. Porque o tráfico e a escravidão pertencem a toda a história do Brasil e moldaram sua identidade coletiva, quer as pessoas estejam conscientes disso ou não. Aliás, no olhar lançado sobre o Brasil pelo resto do mundo, é um país mestiço, crioulo no sentido em que o ouvia o grande filósofo e escritor Édouard Glissant: as culturas em contato produziram o inesperado. Não uma simples adição de línguas, religiões, rituais, expressões artísticas, mas um sincretismo que mistura palavras, práticas, conhecimentos tradicionais e relações com o meio ambiente. E, acima de tudo, um destino solidário.
O Panteão das Memórias Negras
Direção: Karim A. Soumaila
France Ô - 2006 / 52 min
Sessão especial: 20/11
Local: Reserva Cultural - Av. Paulista, 900
Horário: 19h30
Emicida: AmarElo – É tudo para ontem (2020)
No documentário, o músico Emicida apresenta a história por trás de suas músicas do disco. A obra é uma oportunidade de conhecer as influências do movimento negro na História do Brasil. Disponível na Netflix.
Doutor Gama (2021)
O líder, poeta, jornalista e advogado Luiz Gama (1830-1882) lutou pelos direitos dos escravos para que conseguissem suas cartas de alforria. Ele se tornou um dos grandes abolicionistas do País. Disponível no GloboPlay.
A negação do Brasil (2000)
Tabus, preconceitos e estereótipos são discutidos a partir da história das lutas do atores negros pelo reconhecimento de sua importância da história da telenovela, o produto de maior audiência no horário nobre da TV brasileira.
*Este conteúdo foi feito em parceria com o Instituto Nicho 54, entidade que promove a equidade racial na indústria audiovisual
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