A porta se abre para um escritório iluminado pelo sol e arejado. Com o cabelo estilo chanel assimétrico aparado e mechas grisalhas, Eliane Robert Moraes, 71, estende uma das mãos para indicar alguns setores da sua biblioteca privada, com cerca de 10 mil livros. O cheiro de papel e couro, fundido em um aroma específico de biblioteca, domina o ambiente. "A coleção de obras eróticas está na minha casa", avisa, enquanto observa o acervo. Ainda assim, no topo de uma das estantes, destaca-se uma coletânea com vários volumes que, enfileirados, soletram S-A-D-E.
O escritor francês Marquês de Sade (1740-1814) observa tudo de cima da biblioteca pessoal de uma das principais pesquisadoras de pornografia e erotismo do Brasil. Pudera: ele mudou a vida de Moraes. "Descobri Sade nos anos 1980, na graduação em ciências sociais", relembra a crítica literária e professora da Faculdade de Letras da USP. "Descobri e parei no abismo que é o Sade. Fiquei desconcertada."
Ela não se lembra exatamente da primeira obra que lhe chegou às mãos, mas recorda o fascínio que lhe causou. Depois de devorar o que estava disponível do escritor em português, aprendeu francês para ler as obscenidades filosóficas de Sade no idioma original.
Foi ele, portanto, quem abriu as portas para Moraes passar mais de três décadas estudando e escrevendo sobre erotismo e pornografia. Recentemente, foi citada por um jornalista como quem "organiza a orgia". A acadêmica diverte-se com a qualificação. "É um assunto que causa um estranhamento, especialmente no Brasil", afirma. "Mas por que eu, sendo professora e doutora, não deveria colocar a mão na porcaria?".
As qualificações não param por aí. Além da produção literária incessante, ela também é professora aposentada da PUC, onde deixou um legado entre muitos jornalistas que passaram pelo curso, todos impressionados com as aulas de jornalismo literário.
Altos e baixos
Moraes nasceu em São Paulo, em uma família criada na mistura da Suíça (é de onde vem o Robert, que se pronuncia "Robér") com a Bahia (de onde vem o "Moraes"). O interesse pela baixaria literária talvez possa ser compreendido por suas origens. Ela mesma se coloca como uma das maiores beneficiárias da revolução sexual dos anos 1960 e 1970.
"O que estava sendo oferecido na mesa para nós, mulheres, era a opressão. Casar, ter filhos. Consegui fazer o que eu queria, saí de casa aos 18 anos para o mundo", relembra Moraes. "Bastava olhar para fora, abrir a janela, para ver a revolução acontecendo."
Na graduação, depois de um período breve no direito, caiu em ciências sociais e assim esbarrou em Sade quando resolveu estudar pornografia. O desvio de rota foi certeiro. "O Sade me tirou do movimento", esclarece.
Apesar de ter deixado de lado o ativismo na juventude, nunca deixou de ser uma feminista. Ela não acha que o movimento deva ser colocado ao lado das obras obscenas de Sade. "A pauta feminista nunca será encaixável em Sade. Sim, há personagens fortes como Juliette, mas Sade está no plano da fantasia, é intocável. O feminismo é uma luta real. Quem quiser relacionar os dois vai se dar mal", alerta.
A pornografia sobre a qual Moraes se debruça é a literária. O formato mais popular, em audiovisual, não é objeto de estudo da crítica e ela mesma se coloca como crítica da indústria e das imagens produzidas ali. Já a literatura, até no seu modo mais pornográfico, deve ser livre. Dependendo do autor, compete quase de igual para igual ao que está disponível na internet: "Um tênis, uma bota e pouco afeto. Assim é meu orgasmo predileto" — Moraes declara um soneto do poeta Glauco Mattoso.
Discutir o que é pornografia e erotismo é saber lidar com o alto e o baixo, diz Moraes. Comumente, o que é tratado como erótico é aquilo percebido como sofisticado, intelectual e velado. Respeita as regras da moralidade. Já a pornografia é considerada algo "baixo" — amoral, escancarado e rasteiro. Aquilo que choca. "O bas-fond", complementa.
Moraes frisa, por isso, que estudar pornografia não é avaliar a quantidade de obscenidades em um texto literário, mas a qualidade dele. A polêmica da pornografia de Sade ou de Hilda Hilst não está nos palavrões, mas em misturar obscenidade com filosofia. "É discutir Rousseau no meio da orgia."
Conhecendo tantos pornógrafos europeus e brasileiros de boa qualidade, fica difícil se chocar com alguma coisa a essa altura do campeonato. "Considero '50 Tons de Cinza' uma obra muito fraca, rasteira", diverte-se.
'Qual é a sua?'
Além de Sade, Hilda Hilst é uma das escritoras favoritas de Moraes. A paulista, considerada uma escritora "difícil" até o último dia de vida, lançou uma trilogia erótica nos anos 1990. A primeira obra, "O caderno rosa de Lori Lamby", chocou até o maior dos liberais brasileiros.
Havia um motivo para o livro pornográfico de Hilst ser temido: trata-se de uma narrativa em primeira pessoa sobre as memórias sexuais de uma criança de oito anos. O silêncio foi quebrado por Moraes. "Li dez páginas do livro e parei tudo que estava fazendo", diz.
O texto de Moraes, "A obscena senhora Hilda", foi publicado no Jornal do Brasil. Hilda adorou o texto. Por isso, não tardou para que a voz da escritora se materializasse do outro lado da linha do telefone, chamando a crítica para um encontro.
Na casa de Hilda, assim que entrou, veio a pergunta. "Nani, qual é a sua? Você é casada, solteira ou lésbica?". Moraes apontou para uma garrafa de uísque. "Vamos beber que eu te conto", respondeu. A garrafa terminou vazia no final da noite e não foi capaz de embaralhar as memórias de Moraes sobre o encontro. "Hilda era muito desbocada", conta.
'Ninguém estava fazendo'
Dos treze livros publicados por Moraes, o primeiro é praticamente um convite ao leitor iniciante a cair nesse universo. "O que é pornografia", publicada em 1984, junto com Sandra M. Lapeiz, apresenta o caminho das pedras para entender o assunto.
As antologias colocaram ordem na bagunça para mapear quem são, afinal, os autores e autoras brasileiros responsáveis pelas obscenidades. "O corpo descoberto", de 2018, é uma reunião de narrativas escritas entre 1852 e 1922; e a continuação "O corpo desvelado: contos eróticos brasileiros (1922-2022)", em que Nelson Rodrigues, Sérgio Sant'anna, Elvira Vigna, Fernando Paixão (que é marido de Moraes) e dezenas de outros se encontram para dar corpo ao que é o erotismo brasileiro.
O chamado para reunir e catalogar tantas produções eróticas nacionais veio na introdução de "Macunaíma", onde o autor Mário de Andrade reclamava que ninguém se dispunha a organizar a "porcaria" brasileira. A "porcaria", alerta Moraes, é referida pelo escritor modernista como algo bom.
"Ele estava falando comigo", conta a crítica. O desafio colocado pelo criador de Macunaíma foi levado a sério. "Nunca achei que ia ser uma pesquisadora, mas tive que organizar a orgia para conseguir falar dela. Fiz porque ninguém estava fazendo."
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