A Cordilheira dos Andes e um extenso litoral banhado pelo Oceano Pacífico são alguns dos cenários que arrebatam os turistas de passagem pelo Chile. Mas há pelo menos 19,3 mil brasileiros que se encantaram e ficaram. Eles apresentam diferentes razões para a escolha do novo lar: qualidade de vida, ascensão mais rápida na carreira e jornada de trabalho reduzida. Ainda assim, precisam lidar com desafios, como custo de vida mais alto, ausência de 13º salário, férias menores e um sistema previdenciário privado controverso (veja dicas de como procurar um emprego no Chile).
Uma dessas pessoas é a publicitária Fernanda La Salye, 42. Ela saiu de São Paulo em 2011 para arriscar uma nova carreira no seu ramo. Na época, passou uma temporada de três meses em Santiago, a capital do Chile, para mapear potenciais empregadores, fazer networking, aprimorar o espanhol e entender como as coisas funcionavam na metrópole de 6 milhões de habitantes.
“Antes de me mudar, passei um tempo no país com olhos de morador, e não de turista. Em vez de frequentar pontos turísticos, ia ao supermercado, clínicas, pegava ônibus, metrô. Fiz uma pesquisa de campo que me permitiu estar na minha área aqui três meses depois”, relembra.
Os 12 anos desde então foram suficientes para acumular experiência em oito empresas, incluindo Google e bancos de grande porte.
Segundo Fernanda, essa movimentação costuma trazer visibilidade para o profissional que deseja se consolidar no mercado de trabalho chileno. “Não é ficar pulando de galho em galho e ser faz-tudo. É focar em uma área, porque há uma cultura que valoriza quem é especialista em algo”, explica.
Outro aspecto que se diferencia da cultura de trabalho brasileira tem a ver com o respeito ao horário de trabalho. “Sinto que as pessoas aqui são workaholics dentro do expediente, não tem distração, é uma cultura muito focada. Na indústria em que estou inserida, o tempo de trabalho é focado em resultados, não em cumprir as oito horas”, conta Fernanda.
Em abril deste ano, o Congresso chileno aprovou a redução da semana de trabalho de 45 para 40 horas. Com isso, o país se torna, ao lado do Equador, a nação latino-americana com menor jornada.
No entanto, a medida não vale para todas as pessoas. Deve funcionar na prática somente para quem tem emprego formal e trabalha em período integral.
Estão excluídos aqueles que trabalham em período parcial ou sob regime de exceção ao horário de trabalho (cassinos, restaurantes e bares), conforme informações da Fundação Sol, organização independente chilena que investiga economia e trabalho.
A legislação tem um período de transição, e a expectativa é de que entre em vigor integralmente em cinco anos.
Enquanto isso, Fernanda aproveita os benefícios que a empresa dela oferece, como um dia adicional de folga por mês (ela não trabalha aos fins de semana e ainda tem esse dia extra). Além disso, às sextas-feiras, o expediente é encerrado às 14h.
Esse tempo livre é utilizado pela publicitária em duas funções que ocupa para além do trabalho fixo: mentora de estrangeiros e produtora de conteúdo.
Em seu canal no YouTube, com mais de 113 mil inscritos, compartilha dicas para quem deseja morar no Chile. Assista abaixo a um trecho.
No cargo de gerente de marketing de performance digital, a publicitária equipara seu padrão de vida ao de alguém de classe média que vive em São Paulo, mas pondera que não teria alcançado essa ascensão na carreira se estivesse no Brasil.
“Isso é devido à grande concorrência que existe em São Paulo. Aqui, o tamanho do país acaba facilitando se a pessoa tem um diferencial competitivo”, diz. Ela não revela seu salário.
A administradora Karen Viana, 34, também decidiu tocar sua carreira no Chile. Em 2017, ela recebeu uma proposta da empresa em que trabalha desde 2011, a Unilever, multinacional de bens de consumo, para ocupar uma vaga na filial do Chile. A profissional aceitou o convite e em menos de três meses estava de malas prontas para trocar Campinas por Santiago.
Aos poucos, foi galgando postos e hoje ocupa a cadeira de gerência de planejamento e fornecimento do país estrangeiro. Uma das principais mudanças para Karen foi ter deixado o carro de lado. Na metrópole chilena, ela faz a maioria das atividades diárias a pé: vai ao supermercado, sai de casa à noite sozinha, joga tênis. Tudo isso morando estrategicamente perto de ambientes verdes, como o parque que fica em frente sua casa.
“Quando penso na qualidade de vida que conquistei no Chile, não cogito voltar para o Brasil. É um lugar caro para se manter, mas estou bem posicionada profissionalmente e vivo em um local que me traz segurança”, justifica. A profissional também não quis dizer seu salário.
Para quem tem interesse em seguir os mesmos passos, Karen sugere utilizar as ferramentas disponíveis na empresa em que trabalha, caso seja uma multinacional.
“Formalize interesse em mudar de país. Pode ser durante os processos formais de feedback, com o RH, com a liderança direta. Consulte o plano de carreira da companhia, deixe essa vontade clara.”
O empresário e cabeleireiro Fernando Alves, 44, saiu do subúrbio do Rio de Janeiro e chegou ao Chile há 19 anos com a cara e a coragem. Ele costuma dizer que estava no lugar certo e na hora certa.
O motivo que o levou a migrar para o país foi uma história de amor. Logo no começo, nem sequer falava espanhol. A primeira oportunidade profissional foi no salão do ex-namorado.
Ele cresceu no trabalho e, seis anos depois, montou o próprio salão. Ser um empresário estrangeiro trouxe aprendizados. Descobriu a parte tributária, os macetes de administração e os riscos de um negócio.
“Errei e perdi dinheiro”, relata. Com o tempo, o empreendimento deu certo e Fernando conseguiu fidelizar clientes.
“Caí na graça das pessoas daqui. Fiz parceria com blogueiras, embaixada do Brasil e até participei de um programa de música.” Em 2018, ele teve uma outra ideia. Fechou o salão e abriu um estúdio em um bairro nobre de Santiago.
O novo negócio, que conta com serviço personalizado de assessoria de imagem, tem agenda fechada até novembro. A vida fora do eixo profissional inclui prática de esportes e uma sensação de segurança no cotidiano que não vivenciava quando morava no Rio.
“Hoje, o que me faz ficar aqui é o meu trabalho e a qualidade de vida, que não conseguiria ter no Rio de Janeiro. Não é só pelo dinheiro, é o direito de ir e vir”, diz.
Embora não tenha perspectiva de sair do Chile, o empresário admite que existem prós e contras. “Viver fora é como morar na casa de alguém. Tem que se desconstruir, tem que respeitar e tem que deixar o Brasil no Brasil”, aconselha.
A avaliação também é validada por Fernanda La Salye: “Não é fácil ser estrangeiro. Morar fora é zerar a vida.”
O bônus também vem acompanhado do ônus. As leis trabalhistas, por exemplo, são bem diferentes das brasileiras. Lá, não existe 13º salário e CLT.
As admissões são feitas por dois tipos de contrato: indefinido, que não tem data para acabar, e temporário, que é renovado a cada três meses.
As férias podem durar até 15 dias úteis, ou 21 dias no total, 9 dias a menos que no Brasil, onde os trabalhadores têm o direito a 30 dias por ano.
Em relação ao salário mínimo, no Brasil o valor atual é de R$ 1.320. No Chile, é quase o dobro, um total de R$ 2.538, ou 460 mil pesos chilenos. Mas o custo de vida também é alto. Moradia e alimentação estão entre os itens mais caros.
Confira mais detalhes no gráfico abaixo:
O sistema previdenciário é um problema. O modelo é privado e funciona da seguinte forma: cada trabalhador tem uma poupança individual, diferente do modelo coletivo do Brasil.
Ou seja, a pessoa recebe a aposentadoria conforme o que for capaz de contribuir. Na prática, todo empregado deve ser vinculado a uma administradora de fundo de pensão (AFP).
O sistema de capitalização, criado na década de 1980, apresenta a vantagem de não depender de questões demográficas, afirma Jorge Boucinhas, professor de direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
O governo também oferece um sistema de previdência pública, mas os pagamentos são inferiores a um salário mínimo.
”Apesar de ter uma renda per capita muito maior que a brasileira, o Chile é um país desigual. Esse baixo valor da previdência contribui para acentuar essa desigualdade porque a pessoa que tem somente a previdência privada e nenhuma fonte de renda tende a ter um poder aquisitivo na velhice muito inferior”, afirma Boucinhas.
A Previdência no Brasil também paga pouco. Quase 70% dos aposentados brasileiros, cerca de 25,9 milhões, recebem somente um salário mínimo, segundo dados de 2022 do INSS.
O quadro complexo reflete uma combinação de variáveis, que inclui o envelhecimento da população e o aumento da expectativa de vida, avalia Flávio Pretti, conselheiro do Instituto Planejar, Associação Brasileira de Planejamento Financeiro.
“Esse é um tema que encontra dificuldade na sustentabilidade, levando em conta que o Chile vem tendo problemas de inflação”, diz.
Comentários