Deturpado pelo marketing, ou visto como sinal de populismo, o ato de oferecer sem exigir contrapartida financeira continua ocupando lugar central na existência humana. E é pista para transformações radicais da sociedade
Jornais gratuitos. 20% de produto grátis... Tem-se a impressão de que a palavra “gratuito” encontra-se em toda parte e a realidade em lugar nenhum. Profanada pelo marketing, que a invoca a fim de estimular a demanda, a gratuidade, porém, quase desapareceu da oferta política. Subsiste ainda em algumas denominações institucionais como “escola gratuita”, expressão consagrada por um século de liturgia republicana e que não se ousa retificar, substituindo-a por “escola dispendiosa”. Mas quando o debate não é inibido pela indulgência e o respeito que inspiram as velhas senhoras, a maioria dos responsáveis pelos bens públicos reprova o termo gratuidade. Populista, enganador, quase sinônimo de incivismo. Como reconhecer o valor das coisas quando esquecemos que elas custam esforço e dinheiro?
O apelo publicitário sabe tirar proveito da gratuidade. Tomados por grande depressão política, os representantes do bem comum, que antigamente se orgulhavam de propor serviços públicos gratuitos, não querem mais saber disso. O que aconteceu?
Desfaçamos primeiramente o paradoxo ofuscanate, transmitido com insistência por empresas capitalistas, que fizeram da gratuidade seu principal argumento comercial. TF1, M6, Le Quotidien 20 minutes e alguna outros fazem parte de uma mídia empenhada em uma função bastante sensível: produzir signos, símbolos, linguagem, através de um serviço de informação ou de entretenimento oferecido gratuitamente ao público. Atrás da aparência, existe uma transação comercial clássica, com cliente, fornecedor e mercadoria.
O cliente é um anunciante publicitário; o fornecedor, um difusor de programas; e a mercadoria, um telespectador ou um leitor. O que o cliente compra do fornecedor é o “tempo de cérebro disponível”, segundo a expressão consagrada, após Patrick Le Lay, presidente da TF1, ter feito a cínica oferta aos editorialistas. O conteúdo é gratuito, o que é bem normal, porque o conteúdo é a isca. O pescador não exige do peixe que financie a isca. Gratuito para o peixe, mas financiado pelo pescador e por aqueles que apreciam e compram o peixe. Transação 100% comercial. Gratuidade zero.
O que o marketing não consegue esconder
Eis o lado obscuro: asfixia potencial do espaço comum pela privação de gratuidade. Mas a despeito destas deturpações devastadoras, a gratuidade existe e constitui um precioso fio de Ariadne para reexplorar as vias da transformação social. Todos nós compartilhamos uma experiência paradoxal, neste mundo onde o dinheiro parece submergir tudo: a convicção de que a gratuidade não se encontra na periferia, mas no centro de nossa existência.
Certamente, perturbados pelo ocultamento comercial e pelo marketing que banaliza o termo gratuidade, evitamos admiti-la. Isso não nos impede, no entanto, de reconhecer o lugar eminente daquilo que não tem preço: o amor, a amizade, o envolvimento dos pais na educação dos filhos, a luz do sol, a contemplação das paisagens, os presentes que recebemos e cujo valor sentimental ultrapassa imediatamente o caráter de um bem permutável...
O espaço público empobreceu, reduziu-se cada vez mais a parte comum de uma co-propriedade, simples apêndice do domínio privado. Mas onde foram constituídas grandes gratuidades que se solidarizam, a resistência é maior. A previdência social e o sistema público de ensino instalaram-se na paisagem social com uma naturalidade que às vezes faz esquecer como foi árduo conquistá-los. Quando são atacados, a reação é ainda forte. Gratuidades produtoras do sentimento comum: as pessoas que não saem à noite, não se queixam de contribuir para a iluminação pública.
Nosso tempo não escapa ao ocultamento comercial. Segundo o discurso dominante, seria necessário, por razão e virtude, que dedicássemos mais tempo ao trabalho. E assim nos deixamos levar, aceitando às vezes até cobrir nossa atividade de terminologias obscenas: “aprender a se vender bem”, “valer 300 mil euros por ano”. Mas quando aí se projeta a luz da gratuidade, tudo se esclarece de maneira diferente. “Tempo de trabalho” pode ser dito também “tempo vendido”, mercadoria submetida à boa vontade do comprador. O contrário do tempo gratuito, aberto por natureza à atividade livre. De um lado, o instrumento; de outro o objetivo. De um lado, a necessidade; de outro a liberdade.
Certamente, podemos nos desenvolver também no tempo vendido, mas é por uma coincidência que sempre excede o contrato salarial. Esta possibilidade de desenvolvimento pessoal dentro do tempo vendido constitui suplemento inalienável, gratuito e, aliás, aleatório, que exige a subordinação salarial. Suplemento ameaçado: flexibilidade, sub-emprego crônico.
Uma pressão muito forte nos convida a nos esvaziarmos de nossa autonomia biográfica e substituí-la por uma subjetividade cada vez mais submissa aos objetivos da empresa. Que sentido queremos dar ao nosso tempo, à nossa vida? Que parte estamos dispostos a vender? De qual outra queremos preservar a gratuidade sem preço?
Jornais gratuitos. 20% de produto grátis... Tem-se a impressão de que a palavra “gratuito” encontra-se em toda parte e a realidade em lugar nenhum. Profanada pelo marketing, que a invoca a fim de estimular a demanda, a gratuidade, porém, quase desapareceu da oferta política. Subsiste ainda em algumas denominações institucionais como “escola gratuita”, expressão consagrada por um século de liturgia republicana e que não se ousa retificar, substituindo-a por “escola dispendiosa”. Mas quando o debate não é inibido pela indulgência e o respeito que inspiram as velhas senhoras, a maioria dos responsáveis pelos bens públicos reprova o termo gratuidade. Populista, enganador, quase sinônimo de incivismo. Como reconhecer o valor das coisas quando esquecemos que elas custam esforço e dinheiro?
O apelo publicitário sabe tirar proveito da gratuidade. Tomados por grande depressão política, os representantes do bem comum, que antigamente se orgulhavam de propor serviços públicos gratuitos, não querem mais saber disso. O que aconteceu?
Desfaçamos primeiramente o paradoxo ofuscanate, transmitido com insistência por empresas capitalistas, que fizeram da gratuidade seu principal argumento comercial. TF1, M6, Le Quotidien 20 minutes e alguna outros fazem parte de uma mídia empenhada em uma função bastante sensível: produzir signos, símbolos, linguagem, através de um serviço de informação ou de entretenimento oferecido gratuitamente ao público. Atrás da aparência, existe uma transação comercial clássica, com cliente, fornecedor e mercadoria.
O cliente é um anunciante publicitário; o fornecedor, um difusor de programas; e a mercadoria, um telespectador ou um leitor. O que o cliente compra do fornecedor é o “tempo de cérebro disponível”, segundo a expressão consagrada, após Patrick Le Lay, presidente da TF1, ter feito a cínica oferta aos editorialistas. O conteúdo é gratuito, o que é bem normal, porque o conteúdo é a isca. O pescador não exige do peixe que financie a isca. Gratuito para o peixe, mas financiado pelo pescador e por aqueles que apreciam e compram o peixe. Transação 100% comercial. Gratuidade zero.
O que o marketing não consegue esconder
Eis o lado obscuro: asfixia potencial do espaço comum pela privação de gratuidade. Mas a despeito destas deturpações devastadoras, a gratuidade existe e constitui um precioso fio de Ariadne para reexplorar as vias da transformação social. Todos nós compartilhamos uma experiência paradoxal, neste mundo onde o dinheiro parece submergir tudo: a convicção de que a gratuidade não se encontra na periferia, mas no centro de nossa existência.
Certamente, perturbados pelo ocultamento comercial e pelo marketing que banaliza o termo gratuidade, evitamos admiti-la. Isso não nos impede, no entanto, de reconhecer o lugar eminente daquilo que não tem preço: o amor, a amizade, o envolvimento dos pais na educação dos filhos, a luz do sol, a contemplação das paisagens, os presentes que recebemos e cujo valor sentimental ultrapassa imediatamente o caráter de um bem permutável...
O espaço público empobreceu, reduziu-se cada vez mais a parte comum de uma co-propriedade, simples apêndice do domínio privado. Mas onde foram constituídas grandes gratuidades que se solidarizam, a resistência é maior. A previdência social e o sistema público de ensino instalaram-se na paisagem social com uma naturalidade que às vezes faz esquecer como foi árduo conquistá-los. Quando são atacados, a reação é ainda forte. Gratuidades produtoras do sentimento comum: as pessoas que não saem à noite, não se queixam de contribuir para a iluminação pública.
Nosso tempo não escapa ao ocultamento comercial. Segundo o discurso dominante, seria necessário, por razão e virtude, que dedicássemos mais tempo ao trabalho. E assim nos deixamos levar, aceitando às vezes até cobrir nossa atividade de terminologias obscenas: “aprender a se vender bem”, “valer 300 mil euros por ano”. Mas quando aí se projeta a luz da gratuidade, tudo se esclarece de maneira diferente. “Tempo de trabalho” pode ser dito também “tempo vendido”, mercadoria submetida à boa vontade do comprador. O contrário do tempo gratuito, aberto por natureza à atividade livre. De um lado, o instrumento; de outro o objetivo. De um lado, a necessidade; de outro a liberdade.
Certamente, podemos nos desenvolver também no tempo vendido, mas é por uma coincidência que sempre excede o contrato salarial. Esta possibilidade de desenvolvimento pessoal dentro do tempo vendido constitui suplemento inalienável, gratuito e, aliás, aleatório, que exige a subordinação salarial. Suplemento ameaçado: flexibilidade, sub-emprego crônico.
Uma pressão muito forte nos convida a nos esvaziarmos de nossa autonomia biográfica e substituí-la por uma subjetividade cada vez mais submissa aos objetivos da empresa. Que sentido queremos dar ao nosso tempo, à nossa vida? Que parte estamos dispostos a vender? De qual outra queremos preservar a gratuidade sem preço?
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