Todo crítico do bolsonarismo, em seus diferentes matizes, espera o momento alvissareiro em que a devoção de tantos ao indisciplinado, vulgar e carismático ex-capitão irá finalmente se dissipar e, se possível, desaparecer como uma nódoa desbotada da nossa história. Afinal, são tantas histórias mal contadas em sequência envolvendo Bolsonaro & Cia, que qualquer tipo de defesa se torna inverossímil. Escândalos que se não chegam aos bilhões de gestões anteriores, chamam atenção pelo avacalhado, mambembe, descuidado e cafona. Isso sem falar dos absurdos mortalmente temerários, como as posições contra a vacina e tudo mais.
É como se o bolsonarismo fosse algo que precisasse ser extirpado da sociedade e esquecido. Uma borracha que deve ser passada na nossa história para nunca mais se repetir no futuro. Os 49% que votaram no tosco ex-militar nem status de cidadão devem ter mais. São os apoiadores de ditadores, fascistas, misóginos, machistas e coisas muito piores e impublicáveis. O inferno são os eleitores de Bolsonaro.
Não há motivos para tal otimismo pelo fim do bolsonarismo, no sentido do que o movimento significa. Gostemos ou não, Bolsonaro, por méritos políticos próprios, conquistou milhões para sua seita. E não por obras, mas por identificação de sentimentos. O bolsonarismo não é um acidente histórico, mas um período marcado por um brasileiro que sempre pensou de maneira muito semelhante a milhões de brasileiras e brasileiros. Pessoas que muitas vezes de fato não têm grande apreço pela democracia (há também os de esquerda, mas deixa para lá), consideram a família homem-mulher o pilar da sociedade, não se identificam e podem ter até horror aos valores e medalhões de nossa “alta cultura”, incluindo aí os atores da Globo e os músicos da MPB. Que admiram as forças policiais (quem não gosta é intelectual), aprovam a autodefesa armada, e acreditaram na retórica antibandidagem do ex-presidente. O bolsonarismo é uma ideia – e vencedora, que sempre será uma ameaça eleitoral.
Esse grande contingente é marcado pelo antipetismo. Votaram por anos no PSDB para a Presidência, muitos com a mão tampando o nariz, apenas porque o viam como a alternativa para derrotar defensores de aborto, drogas, do feminismo, afundados nas acusações da Lava Jato, e de tudo o que consideravam o mal. Queriam alguém que falasse com todas as letras sobre a importância de os banheiros serem separados por gênero e coisas desse nível sem medo do ridículo. Na esteira de uma crise política, moral e econômica, todas de grandes proporções, Bolsonaro incorporou esse personagem que reage a um mundo indesejado do presente e busca os valores do passado: enfim, tecnicamente um reacionário. Ele bancou um enfrentamento que os tucanos jamais fariam.
Bolsonaro se tornou um defensor de um modo de vida praticado por um contingente. Um líder de churrascos que se tornou um líder de multidões. Não se trata de questão de racionalidade. É mais do que política, é mais do que economia: são os mais profundos valores que estão em jogo – muitos dos quais adoramos odiar.
Mas como assim, como tantos podem seguir alguém que prega até contra a vida? O Velho Testamento, leitura de cabeceira de tantos seguidores do ex-capitão, não trata a vida como valor supremo, mas sim a salvação da alma e a obediência. Tome-se o caso de Abraão, após ter sido ordenado por Deus, partiu para matar seu próprio filho – ordem são ordens. Esse ambiente místico e religioso é um dos componentes do que podemos chamar bolsonarismo – fora o militarismo e mesmo um certo liberalismo de orelha de livros de Misses. É preciso confiar muito na racionalidade humana para imaginar que esquemas de desvios de patrimônio público possam causar grandes fissuras nesse rebanho anti-iluminista.
Se alguém vasculhar a imprensa tradicional haverá poucas defesas de aliados do último trambique do bolsonarismo, esse do contrabando de presentes a serem vendidos nos EUA. Há até reportagens falando da decadência do movimento da “extrema-direita” por conta das revelações. Melhor seria pesquisar no submundo dos comentários de Twitter e Instagram. Na página do Bolsonaro, no dia dos pais, por exemplo, havia uma citação do velho testamento (Êxodo 20:12), e reflexões do seguinte nível de admiradores entre dezenas de milhares de “curtidas”: “Presidente Bolsonaro, o PAI mais perseguido da história recente do Brasil! Mas Deus sabe exatamente o que faz!”.
Para usar um termo bíblico, Bolsonaro conquistou algo mais visceral do que as mentes, conquistou os corações. Para quem se espanta com essa constatação, Lula, em sua longa carreira política, fez exatamente o movimento, buscar o sentimento das pessoas e também conta com sua própria seita. Foi muito útil quando sofreu sua própria bateria de acusações de liderar grandes esquemas de corrupção.
Se um político consegue esse nível de submissão de parcela da sua sociedade, será defendido em qualquer situação. Faça o que fizer será fácil para ele receber milhões em Pix orgulhosos. Nem que seja um Antônio Conselheiro revivido ou um Jim Jones brasileiro.
Comentários