Pagar uma compra com cartão de crédito significa colocar para “conversar” um banco emissor, uma empresa de maquininhas, uma bandeira e um estabelecimento comercial, além, claro, do cliente. São tantos elos na cadeia que mudanças podem gerar um efeito “pega-vareta”: mexer em um pode estremecer os demais. Exatamente por isso, na visão de especialistas, as alterações no crédito rotativo e no próprio formato dos cartões de crédito precisam ser discutidas com cautela.
Em meio aos debates sobre o crédito rotativo, os bancos demandam uma redistribuição dos riscos entre agentes. Hoje, cada compra com cartão gera um recebível, um título que diz que o lojista tem o direito a receber aquele valor do banco que emitiu o cartão dali a 28 dias.
Esse pagamento é feito pelo banco mesmo que o cliente dê o calote na fatura - ou seja, o banco é quem garante o pagamento ao lojista ou à maquininha que antecipou os recursos, afinal, é o emissor que vai receber o valor da fatura do cliente.
De acordo com especialistas, o atual modelo do parcelamento sem juros, que inclui a garantia dos bancos, é uma evolução do antigo cheque pré-datado. “No cheque pré-datado, o risco estava todo com o lojista”, diz Boanerges Ramos Freire, consultor e presidente da Boanerges & Cia, especialista no mercado de pagamentos. “Os varejistas foram extremamente beneficiados pelo sistema de cartão de crédito.”
Segundo ele, uma redistribuição dos riscos do parcelado é necessária, mas também é complexa. “Não foi feita porque é extremamente complexa, quase como um jogo de pega-vareta. Não dá para mexer só em uma parte, tem de mexer no todo.”
Enquanto os bancos trazem à mesa possíveis restrições ao parcelado sem juros para acabar com o rotativo, as maquininhas independentes alegam que isso não seria necessário porque a tarifa de intercâmbio, paga pela maquininha ao emissor a cada transação, já cumpriria o papel de remunerar os riscos.
Segundo dados do BC do ano passado, a tarifa média cobrada do crédito à vista era de 1,32%, aumentando para 2,07% quando o cliente divide a compra em sete vezes ou mais. “O emissor está cobrando taxa de intercâmbio crescente a cada parcela, é remunerado”, sustenta Carol Conway, presidente da Associação Brasileira de Internet (Abranet).
Ela cita ainda que a média de taxa de antecipação é de 19% ao ano, enquanto a do rotativo é de 446%, segundo dados de julho. “A antecipação de recebíveis é uma parcela do setor financeiro que passou a ter competição. Incitados a reduzir o rotativo, querem fazer o lojista ficar prisioneiro.”
A avaliação de executivos ligados às maquininhas independentes é de que os bancos buscam chancela institucional, seja do BC, do Ministério da Fazenda ou do Conselho Monetário Nacional (CMN), para limitar o parcelado. Em tese, nada impede que eles mesmos façam as mudanças, mas, se outros não aderirem, podem perder espaço no mercado.
“Querem que o governo meio que padronize essa questão”, avalia Conway. “Sugere que a coordenação para limitar parcelas é para diminuir a competição”, completou uma fonte do ramo.
A Febraban afirma que busca a divisão dos riscos entre os agentes do setor. “A Febraban e os bancos, dentro da conduta legal e concorrencial que sempre tiveram e prezam, perseguirão um caminho que dilua o risco de crédito entre os elos da cadeia e elimine os subsídios cruzados, numa transição sem rupturas do produto do cartão de crédito e de como ele se financia”, disse a entidade, em nota.
Como mostrou o Estadão/Broadcast, nas discussões entre a indústria de cartões, o governo, o Banco Central e o varejo, discute-se o virtual fim do rotativo, com a substituição pelo parcelamento de faturas com juros. O debate esbarra justamente na discordância sobre o papel que o parcelado sem juros tem nos custos do rotativo para os clientes, e sobre o que vai acontecer com ele.
O rotativo tem os juros mais altos do crédito pessoa física, e também a mais alta inadimplência, de 49,5%, de acordo com os dados do BC referentes a julho. Estes altos patamares fizeram com que a discussão começasse, e a relação de causa e consequência entre eles tem dividido o setor.
No BC, o presidente Roberto Campos Neto disse que o parcelamento sem juros atualmente é uma “anomalia”, porque representa 15% do crédito total e não incide juros. Campos Neto chegou a falar na criação de uma tarifa para desestimular o “parcelado longo”, afirmando que a média de parcelas já alcançava 13 meses.
Dados do BC do fim de 2022 mostram que, em valor financeiro, as compras à vista representavam 52,7% do total, seguido por 17,6% de 2 a 3 parcelas, 14% de 4 a 6 vezes e 15,7% em sete parcelas ou mais.
Do lado do governo, a avaliação é de que o tema deve ser retomado no momento da autorregulamentação estabelecida pelo projeto de lei do Desenrola, se aprovado, mas a equipe econômica vê dificuldade de os bancos fazerem a discussão sozinhos.
No desdobramento mais recente da queda de braço, a Febraban afirmou que as taxas de antecipação de recebíveis cobradas pelas independentes são três vezes maiores que as cobradas pelas maquininhas ligadas a banco, em especial nas compras a prazo, o que explicaria, segundo a entidade, a contrariedade dessas empresas a restrições ao parcelado sem juros. As maquininhas independentes rebatem esse ponto e afirmam que o ganho de participação de mercado nos últimos anos não sugere que oferecem um produto caro.
A guerra de versões acontece em um momento em que o mercado de cartões vive a ressaca dos anos de forte expansão da base de clientes. Desde 2013, quando as chamadas instituições de pagamento foram criadas, o número de cartões ativos no Brasil aumentou 155%, considerando o número do fim de 2022 (208,8 milhões). Até o início de 2019, a quantidade ainda estava abaixo de 100 milhões.
As instituições de pagamentos e bancos digitais usaram o cartão para fazer frente aos bancos tradicionais, que em reação, também aumentaram a oferta. Os limites se empilharam, mas a renda dos clientes não, e com o aumento da inflação e dos juros entre 2021 e 2022, a inadimplência deu um salto. O mercado se viu obrigado a colocar o pé no freio.
O BC reconhece que houve uma emissão exagerada de cartões nos últimos anos, não necessariamente com a análise mais criteriosa de crédito, o que fez saltar o número de cartões por pessoa - e se correlaciona com o aumento da inadimplência, na avaliação do regulador.
No debate sobre o rotativo, entidades como a Associação Brasileira das Empresas de Cartões de Crédito e Serviços (Abecs) propuseram a portabilidade das dívidas do cartão de crédito. Também está sobre a mesa a ideia de que os dados de cartão sejam obrigatoriamente compartilhados via Open Finance, para que todos os emissores saibam exatamente quanto de limite cada pessoa tem antes de conceder mais.
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