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Ciência ou pseudociência? O que dizem os psicanalistas

 

No livro “Que bobagem! Pseudociências e outros absurdos que não merecem ser levados a sério”, a divulgadora científica Natália Pasternak e o jornalista Carlos Orsi reúnem os estudos mais recentes sobre astrologia, homeopatia, acupuntura, discos voadores e outros temas. Entre eles, a psicanálise.

O objetivo da obra lançada no fim de julho pela editora Contexto é argumentar que nenhum desses conhecimentos é científico. A abordagem gerou uma repercussão negativa. Em relação à psicanálise, não foi diferente, ainda que questionamentos não sejam novidade. Mesmo sendo lastreada em instituições de renome, acadêmicos de carreira e um amplo repertório de estudos, a área é alvo de contestações desde sua fundação no final do século 19.

Neste texto, o Nexo conta um pouco da história da psicanálise, explica a metodologia da área e fala com especialistas sobre o papel da prática ao lidar com a complexidade das emoções e relações humanas.

O que o livro diz sobre pseudociências

A discussão sobre certas práticas, crenças e campos de estudo serem ou não ciência vem de longe. Segundo a Enciclopédia de Filosofia da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, a palavra em latim pseudoscientia já era utilizada pelo menos desde a primeira metade do século 17, diferenciando investigações empíricas de crenças religiosas.

Ao longo da história, várias atividades foram chamadas de pseudociência. Sobretudo em comparação à ciência médica, por exemplo, que desenvolve e avalia tratamentos de acordo com evidências de sua eficácia e segurança. Essas atividades foram acusadas de promoverem intervenções sem eficácia comprovada – e, às vezes, até perigosas.

O livro de Pasternak e Orsi considera pseudociências como “sistemas que, rejeitados pelo filtro científico, dedicam-se a fazer exatamente o contrário do que as ciências propõem — idolatrando a palavra infalível de ‘gênios’ fundadores, inventando malabarismos para descartar boas evidências, resistindo a revisões significativas — e sobrevivem na cultura como fonte de crenças pretensamente válidas a respeito da realidade concreta”.

Ao longo da obra, os autores se debruçam sobre 12 desses “sistemas”: astrologia, homeopatia, acupuntura, curas naturais, curas energéticas, modismos de dieta, paranormalidade, discos voadores, pseudoarqueologia, antroposofia, poder quântico e psicanálise.

O que o livro diz sobre psicanálise

Pasternak e Orsi argumentam que falta à psicanálise “passar pelos mesmos procedimentos de testagem e escrutínio clínico que se aplicam aos tratamentos propostos para aliviar as aflições do corpo”.

E acrescentam que, “como fonte de evidência, a experiência clínica é insuficiente, inconclusiva e, no limite, inválida – porque dificilmente será representativa”. O livro ainda compara a influência da inclinação teórica pessoal do psicoterapeuta na leitura de resultados (ou seja, o peso de sua própria crença na hora de interpretar seu objeto de estudo) aos médicos que se deixaram “seduzir pelos ‘resultados positivos’ da cloroquina e da ivermectina na pandemia de covid-19”.

Os autores também analisam a psicanálise a partir de outras ciências hermenêuticas – que em vez de leis universais produzem interpretações baseadas em contextos, como filosofia, história e ciências sociais. E defendem que esses campos respeitam critérios científicos e apelam às evidências empíricas. O que, segundo eles, a psicanálise não faz.

O que é a psicanálise

A psicanálise é uma metodologia de investigação da mente humana criada no fim do século 19 pelo neurologista austríaco Sigmund Freud. Ou a “ciência da observação dos relacionamentos humanos pela ótica do inconsciente”, como resume ao Nexo Arnaldo Chuster, membro da Sociedade Psicanalitica do Rio de Janeiro e do Newport Institute of Psychoanalysis.

O significado do “inconsciente” citado pode variar de acordo com cada linha de estudo dentro da área. Para Freud, por exemplo, trata-se da parte da mente que não podemos acessar com nossos pensamentos, um lugar em que guardamos  ou protegemos  certos conteúdos separados da nossa consciência.

Freud – e mais tarde outros nomes como o suíço Carl Jung, o britânico Wilfred Bion e o francês Jacques Lacan, que criaram seus próprios sistemas – desenvolveu um método de tratamento que consiste, em linhas gerais, em deixar que a pessoa com problemas fale livremente sobre si e sobre eles. Até que ela mesma perceba aquilo que interfere em sua vida e lhe causa desconforto. A partir daí, auxiliada pelo psicanalista, a pessoa analisada ressignifica suas questões emocionais.

“É um método peculiar que afeta ambos os participantes”, disse Chuster. “Não há nenhuma outra prática em que as pessoas se disponham tanto quanto na psicanalítica. É uma forma de relação descomprometida com qualquer avaliação, diagnóstico e julgamento. Uma forma de ficar livre pra poder se engajar em uma experiência emocional”, completa.

Para Chuster, nesse sentido a psicanálise pode ser mais próxima da arte do que das ciências tradicionais. “Não há como entender a arte em sua infinitude, temos só uma apreciação, uma contemplação estética”, disse. Na psicanálise, ocorre a mesma coisa. Você pode contemplar a experiência de outra pessoa, que é também estética, porque ela leva em conta os sentimentos em primeiro lugar”, segue Chuster.

O método psicoanalítico

Agir nesse espaço profundo criado pelas emoções e relações humanas permite certo nível de liberdade. O que, segundo os próprios psicanalistas, não dispensa o rigor científico.

“Há uma série de metodologias científicas que a psicanálise usa perfeitamente: nada deve ser tomado como certo, tudo deve ser colocado no seu devido contexto, tudo tem que ser checado na medida do possível”, disse ao Nexo Luiz Carlos Junqueira Filho, médico e psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.

Esse “possível” se refere ao contato entre analista e pessoa analisada. É a partir das interpretações do primeiro e das respostas do segundo que vai se construindo o método psicanalítico – que, segundo Junqueira, é empírico.

“A psicanálise passa pela interpretação do analista, pela construção de uma percepção”, explica o médico. “Isso acontece na interseção entre a evolução da emoção da pessoa analisada e a evolução de uma emoção do analista em relação ao que está sendo causado nele pelo que o analisando está comunicando”.

“A tendência das pessoas é tentar entender a psicanálise comparando com outras práticas e outras ciências, mas é impossível”, acrescenta Chuster. “Tem muita gente com pensamento tecnológico, positivista e determinista que só quer ver relação de causa e efeito. A psicanálise não está nesse campo, mas no da complexidade. É a ciência de encarar coisas que não se resolvem facilmente”.

O que os pacientes buscam na psicanálise

A psicanálise é uma relação complexa, que leva a resultados nem sempre fáceis de serem compreendidos. “O que leva alguém a buscar a psicanálise é sofrimento, dor, mesmo quando a pessoa nem se dá conta de que isso está presente”, disse Junqueira.

“O que a psicanálise pretende é que essa pessoa aprenda a sofrer. Não num sentido masoquista, mas no de perceber que há uma série de questões na vida que geram dores emocionais e que nós precisamos aprender a administrá-las”, completa.

O médico explica que a psicanálise leva em conta o inconsciente como um fator fundamental para a saúde mental de uma pessoa. Nele, reside boa parte do que processamos ao passar pela experiência humana: traumas, sobretudo os de infância, e neuroses que podem causar diferentes tipos de sofrimento, como ansiedade, depressão, compulsão e fobias variadas.

“O método da medicina é curativo, pretende eliminar a doença”, disse Junqueira. “Enquanto o da psicanálise é desenvolvimentista, defende que, em vez da cura, existe o desenvolvimento mental”.

Uma ciência em maturação

De tempos em tempos, essa metodologia vira alvo de críticas. Para especialistas e analistas, porém, o debate sobre seu método faz parte de seu desenvolvimento como ciência.

Em comparação com outras áreas do conhecimento, a psicanálise é uma disciplina jovem. Investigações empíricas do mundo natural, por exemplo, existem desde a Antiguidade – assim como as primeiras expressões de ciências humanas. O método científico tem sido usado e debatido desde a Idade Média e a chamada Revolução Científica dos séculos 16 a 18 estabeleceu as bases para o que entendemos hoje como ciência em diferentes áreas. Bem depois disso, na virada do século 19 para o 20, surgem Freud e a psicanálise.

“O método está sempre se recriando para cada pessoa”, disse Chuster. É um trabalho de criação, em cada sessão a gente está sempre recriando a psicanálise”.

O ônus do debate

“Esse é o ônus que a psicanálise incorporou desde seus primórdios, sem nunca ter a ilusão de que ela deixaria de ser cobrada”, disse Junqueira. “São questionamentos naturais sobre uma metodologia que é recente, uma jovem especialidade”.

Para ele, é bom que existam livros como o de Pasternak e Orsi. “Mesmo com seus erros de julgamento, eles sempre trazem de volta o debate sobre a psicanálise, que ajuda a ressaltar sua própria importância”, afirmou.

Outros membros das entidades da área psicanalítica parecem concordar com Junqueira.

“Tenho dificuldade de entender a indignação com a afirmação de que a psicanálise não é uma ciência como a física, química e eventualmente a biologia – não é mesmo e não há porque os analistas se sentirem diminuídos por isto”, escreveu em um artigo o analista Elias Mallet da Rocha Barros, membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e da Sociedade Britânica de Psicanálise e editor para a América Latina do International Journal of Psychoanalysis.

No texto, Barros pede que não haja ataques diretos a Pasternak e defende que a psicanálise não tem como objetivo ser avaliada “por medidas exatas”. “Não trabalhamos com equações. É verdade que dentro de nosso campo, é difícil contradizer uma afirmação, uma teoria. Não somos donos de nenhuma verdade. Somos militantes das dúvidas [...]. Alguém de nós vai dizer que a produção literária da humanidade não é ‘científica"? E ao mesmo tempo não temos a menor dúvida de que as obras literárias fundaram o mundo desde seus inícios, mesmo quando as tradições eram apenas orais”, escreveu.

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