O fenômeno global de padronização alimentar, a busca pela praticidade e por preços acessíveis têm aberto grande espaço para produtos industrializados no cotidiano apressado. Assim, receitas com o sabor da tradição, saberes vindos dos antigos e preparações artesanais estão se perdendo.
Nota-se também que a biodiversidade do nosso país, uma das mais festejadas no mundo, nem sempre aparece no prato. Para ajudar a resgatar ingredientes e apresentar comida ainda desconhecida, o movimento Slow Food Internacional criou a Arca do Gosto. “Trata-se de um catálogo de itens alimentares que estão em risco de perda cultural ou biológica”, explica Lígia Meneguello, coordenadora de Programas e Conteúdos da Associação Slow Food do Brasil.
Lígia conta que já são 6 162 ingredientes do mundo todo, sendo 235 brasileiros, e a lista continua crescendo. Aliás, para contribuir, basta entrar no site.
Além da ameaça de extinção de determinadas espécies por desmatamentos, pesca predatória, queimadas, urbanização, observa-se a displicência com ensinamentos ancestrais, resultando na redução do consumo de diversas preparações e no abandono do legado culinário.
“Parte das novas gerações não demonstra tanto interesse em aprender sobre antigas receitas”, lamenta a nutricionista Maísa Mota Antunes, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Sem contar a tendência crescente de valorizar produtos que vêm de fora.
“Hoje, se vê grande consumo de ultraprocessados, sobretudo entre os adolescentes”, comenta a nutricionista Adélia da Costa Arruda Neta, da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Daí a urgência em exaltar o que é regional e trazer a variedade para a mesa.
“A Arca do Gosto é como uma porta de entrada para várias ações”, diz Lígia. Ajuda a construir caminhos de recuperação, incentivando cozinheiros, merendeiras, cooperativas, pequenos produtores, entre tantos, numa ciranda saborosa e nutritiva.
Confira 13 alimentos brasileiros que, infelizmente, já embarcaram na Arca:
Embora a batata-doce amarelada seja a queridinha do povo que treina nas academias, a roxa é quase uma desconhecida. Seu cultivo restrito torna o alimento difícil de ser encontrado. Uma pena.
Essa raiz tuberosa – como definem os botânicos – é provedora de potássio, mineral indispensável no combate às câimbras, e é fonte de carboidrato, nutriente sinônimo de energia. Para completar, sua coloração denuncia a presença de antocianinas, pigmentos antioxidantes que resguardam as artérias.
Seu nome vem da língua tupi-guarani e significa vermelha. Tem essa cor por obra de uma família de pigmentos chamada carotenoides, aliados da saúde dos olhos, entre outros atributos.
Embora pitangueiras ainda enfeitem quintais pelo país, o desenho de muitas cidades se transformou e a urbanização reduziu o espaço para essas árvores. A delicadeza do fruto pode ser empecilho para transportá-lo, o que impede sua chegada em locais mais distantes da área de cultivo.
Considerado um tesouro mineiro, esse produto artesanal vem das cidades da Serra da Canastra e coleciona prêmios internacionais. E, junto do polvilho, serve de matéria-prima para o legítimo pão-de-queijo.
“Um dos desafios para manter a receita e toda a sua tradição é adequar a fabricação às normas sanitárias, já que é feito com leite cru”, comenta a professora Maísa. Rastrear o processo, garantindo a boa higiene em todos os estágios é uma das principais medidas nesse sentido.
A semente da araucária, rica em carboidrato, cai bem em pratos doces e salgados, mas vem dos tempos pré-colombianos a maneira mais tradicional de saboreá-la e que ganhou o apelido de “sapecada”. Nesse método, é torrada em meio às brasas de grimpas, isto é, dos ramos secos da árvore.
A busca desenfreada pela madeira dessa espécie, de altíssima qualidade, levou as florestas de araucárias à beira da extinção. Essa ameaça desencadeou ações, entre as quais a proibição do corte e ainda o plantio desses pinheiros em divisas de propriedades rurais.
Apesar de certa semelhança com a pimenta-do-reino, elas não têm parentesco. A pimenta-rosa é conhecida popularmente como aroeira e cresce naturalmente em diversos locais do Brasil, sobretudo na região da Mata Atlântica, daí a importância de protegê-la de ameaças como desmatamento e queimadas e incentivar o extrativismo sustentável.
Rica em substâncias antioxidantes, as sementes, quando moídas, dão um toque especial em receitas com pescados. Povos originários fazem uso medicinal dos grãozinhos, pelas propriedades cicatrizantes.
Considerado um dos símbolos do cerrado, o baruzeiro oferece uma castanha que esbanja nutrientes. Rica em ferro e zinco, dupla que atua no combate à anemia, ela ainda concentra proteína. Daí ser muito bem-vinda ao cardápio, especialmente das crianças.
Pelo sabor parecido com o do amendoim, serve como matéria-prima da paçoca e do pé-de-moleque, entre outras delícias das quituteiras goianas. Mas, como é espécie nativa de uma das regiões mais debeladas pelo desmatamento, requer práticas sustentáveis para não sumir do mapa.
Ele é retirado do caule de uma palmeira nativa da Mata Atlântica. A má notícia é que o extrativismo clandestino resultou no quase esgotamento de suas reservas.
Ao contrário de outras espécies, caso da pupunha e do açaizeiro, que têm a capacidade de rebrotar, a juçara morre depois de cortada. Portanto, não tem a chance da regeneração.
“Outra diferença importante é que demora de 8 a 12 anos para produzir um palmito de qualidade, já a pupunha leva apenas 18 meses após o plantio”, diz a professora Adélia.
Apelidado de “ouro do cerrado” o fruto do pequizeiro incrementa o arroz com seu colorido, aroma e sabor em uma das combinações mais apreciadas por goianos e mineiros. Oferece ainda diversos nutrientes, inclusive uma gordura de ação anti-inflamatória.
Embora esteja em área que sofre com a degradação do meio ambiente, há gente trabalhando para não deixar faltar. “Existem movimentos, de cooperativas no norte de Minas Gerais, entre outras, que visam proteger a espécie”, exemplifica a professora Maísa.
Uma das mais consagradas e nutritivas representantes das PANC (plantas alimentícias não-convencionais). Oferece vitaminas, sais minerais e um bom teor proteico.
Ainda que haja um movimento pela sua valorização culinária, a espécie segue sendo utilizada como cerca viva em várias cidades. Inclusive, antigamente, as igrejas mineiras contavam com essa proteção natural e muita gente devorava o vegetal durante as missas. Daí o nome sacro.
Diante de uma opção nativa, abundante, deliciosa e que carrega tanta história, não há motivo para priorizar hortaliças vindas de outros continentes.
Dá um trabalhão para ser preparada e, por isso, tem desaparecido das cozinhas e das vendas do país. Ante a correria do cotidiano, muita gente opta pela praticidade da versão industrializa.
Perdem-se, assim, as sutilezas de sabor e textura do doce feito no tacho de cobre, em fogão de lenha, e com gosto da culinária caipira, sobretudo, das Minas Gerais.
Cantada por Caetano Veloso, a bebida cristalina é Patrimônio Cultural Brasileiro, segundo o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
Para o preparo da Cajuína, há que ter uma dose extra de paciência, requer cocção e filtragem para a retirada dos taninos – compostos que amarram a boca. O resultado é um líquido dourado, saboroso, refrescante e sem nenhum aditivo. E que concentra substâncias benéficas. Lamentavelmente, tem sido trocado por refrigerantes e outras bebidas baratas e que carecem de nutrientes.
Esse peixe gigante dos rios amazônicos pode pesar mais de 200 quilos e ultrapassar dois metros. Sua carne rosada rende filés altos que ficam perfeitos em caldeiradas, assados e tantas outras receitas.
Além de entregar proteína da melhor qualidade, fornece vitamina A, que é essencial ao sistema imune. Para evitar sua extinção, há leis proibindo a pesca em período de reprodução. Orientar as comunidades ribeirinhas sobre a importância da preservação também é uma das principais estratégias de defesa.
Também chamado de bolinho de goma, essa delicada iguaria integra festas religiosas no nordeste. A professora Adélia aprendeu a preparar com sua avó, também Adélia, na cidade de Limoeiro, agreste de Pernambuco. “Ela ralava a mandioca para fazer o polvilho e só depois misturava os demais ingredientes para moldar o biscoito”, lembra. “Além de vender, colocava na merenda escolar da criançada”, conta.
Nos últimos anos, segundo informações da Arca, os costumes que envolvem sua preparação vêm desaparecendo: “A oferta de versões industrializadas desse alimento, vendidas a baixo preço, desmotiva a produção caseira e desvaloriza o produto artesanal”.
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