Três anos depois, Humphry escreveu o livro Jean’s Way, contando essa história. "Desde então, tenho lutado para que todos tenham o direito de morrer com dignidade", diz. Em 1991, ele lançou outro best-seller: Final Exit, que saiu em 1994 no Brasil como Solução Final. Nessa obra polêmica, o jornalista vai além de defender a eutanásia ensina como se matar, dá as doses certas de cada medicamento e sugere que o doente use um saco plástico na cabeça, para que a asfixia diminua as chances de um suicídio malsucedido.
Gente como Humphry, Benjamin e Kevorkian atraem a ira dos militantes antieutanásia. Nos Estados Unidos, a polêmica é levada muitas vezes em clima de guerra. O panorama não é muito diferente na Bélgica, que se prepara para votar uma lei semelhante à que está para ser aprovada na Holanda, ou na Suíça, que aceita o suicídio assistido. Na Austrália, o debate também é quente. Em 1995, uma das regiões do país, o Northern Territory, chegou a legalizar a eutanásia, mas só houve tempo para que duas pessoas morressem dessa forma. Em 1997, em meio a muitos protestos, o Senado australiano cancelou a lei. Na América Latina, há um único país onde o debate está na mídia: a Colômbia. A Constituição dos nossos vizinhos amazônicos aceita a eutanásia, mas a lei ainda não está em prática porque não foi regulamentada. Enquanto isso, nenhum médico colombiano pode ser processado por praticar a "morte piedosa". Lá, a julgar por uma pesquisa recente realizada na internet, 54% da população é favorável à eutanásia.
"Eutanásia se faz em toda parte. Nós, na Holanda, somos apenas os únicos a reconhecer e regulamentar", afirma o professor Van der Wal, da Universidade Livre de Amsterdã. "Em algum momento, com a medicina cada vez mais capaz de prolongar a vida e cada vez mais pessoas chegando à velhice, todos os países do mundo, inclusive o Brasil, terão que abordar o tema abertamente", diz.
O médico Marco Segre,ex- presidente da Sociedade Brasileira de Bioética, concorda com Van der Wal. "Essa é uma das discussões mais importantes para o futuro da medicina", diz. "O que está em jogo é o respeito à individualidade e a solidariedade com a dor. Não podemos mais ignorar o debate." Segre defende a autonomia do paciente e se coloca favorável à eutanásia, desde que ela seja decidida pelo próprio doente. "Mas entendo que os médicos que lutam todos os dias contra a morte tenham dificuldade em se imaginar tirando a vida de alguém", diz.
É o caso do neurocirurgião José Oswaldo de Oliveira Júnior, do Hospital do Câncer, em São Paulo. "É mais fácil para um teórico falar com naturalidade de eutanásia", diz. "É como um general falando da guerra. Para nós, soldados, que sujamos as botas na lama todo dia é muito difícil pensar nisso. Às vezes um familiar me diz que não sabe se reza para o doente viver ou morrer. Eu digo: ‘Acenda duas velas. Reze para que aconteça o melhor para ele.’ Não dá para decidir."
José Oswaldo trabalha numa área que era até há pouco tempo praticamente ignorada pela medicina e que hoje está adquirindo uma importância enorme dentro dos hospitais: o combate à dor. "Hoje conseguimos controlar a dor em 96% dos pacientes, usando drogas novas e outras antigas que, no passado, eram vistas com preconceito, como a morfina. Nosso trabalho não é dar mais dias à vida - é dar mais vida aos dias." É compreensível que um profissional como ele, que se dedica a proporcionar algum conforto aos desesperançados, não consiga encarar com tranqüilidade a morte como alívio. "Morrer não é uma opção terapêutica. Quando o paciente diz ‘me mata’, ele quer socorro, não quer morrer."
A nova ênfase da medicina no controle da dor é um dos melhores argumentos "pró-vida". Mas os defensores do direito à escolha não se dão por satisfeitos. "É maravilhoso que hoje se consiga controlar a dor de quase todos os pacientes", diz o escritor Derek Humphry. "Mas, mesmo assim, sobram 4% que vão sofrer. Esses têm direito a uma escolha."
Outro avanço da medicina que tem sido usado para combater a eutanásia é a melhor compreensão do cérebro. "Pessoas que querem morrer geralmente estão deprimidas", afirma a psiquiatra Maria Teresa da Cruz Lourenço, também do Hospital do Câncer. "E depressão é uma doença que pode ser tratada com remédios cada vez mais eficientes." Assim como José Oswaldo, Maria Teresa está na linha de frente da batalha contra o sofrimento - só que o psíquico. "Jamais tive um paciente que quisesse morrer de forma tão firme que sua convicção resistisse a uma longa conversa ou a remédios apropriados", diz.
Mas, por mais que se trate a dor e a depressão, é inevitável que haja pacientes que continuem vendo o tempo de vida que lhes resta como uma experiência horrível e que desejem abreviá-lo. Ou seja, a questão de fundo persiste: independente do que a medicina possa oferecer, eles têm o direito de escolher o jeito e o momento de morrer? Indo mais longe: pacientes que não são terminais também podem recusar a vida que lhes é oferecida? Veja o caso do inglês James Haig, relatado no livro Solução Final. Até os 24 anos, quando um acidente de moto o deixou paralisado do pescoço para baixo, ele era um atleta. James sabia que muitos tetraplégicos e quadriplégicos conseguem vencer a paralisia e encontrar razões para viver. Mas ele não está interessado: simplesmente decidiu morrer.
Isso sem falar na tortura psicológica. "Não há nada pior do que a sensação de morte iminente. O doente sabe que vai morrer e isso não é fácil", diz o oncologista paulista Riad Younes. Ele é especialista no mais terrível dos cânceres, o de pulmão, que lhe rouba 85% dos pacientes. Já viu muita gente morrer. E conta que a maioria dos doentes terminais passa as noites em claro, não por causa da dor, mas pelo pavor de algo acontecer quando não houver ninguém por perto para socorrê-lo. Essa tensão, segundo Riad, é muitas vezes insuportável.
O câncer de pulmão é um assassino rápido mata em meses. O que dizer de enfermidades lentas e ainda mais implacáveis, como o Mal de Alzheimer, que destrói progressivamente o cérebro? Essa doença leva, em média, oito anos para matar. E é cruel. Nos últimos três ou quatro anos, o paciente perde a consciência e definha até que alguma infecção impeça a respiração. A questão: depois dessa fase, há alguma vantagem em manter o paciente vivo? "Não", diz o neurologista Paulo Caramelli, do Hospital das Clínicas, em São Paulo. "Se encontrarem a cura, vai levar cinco anos para que comecemos a salvar vidas. E, mesmo assim, só nos casos novos. Não vamos salvar quem já está em estágio avançado." Seria melhor se eles morressem então? "Não posso parar para pensar nisso. Não cabe a mim decidir."
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