Essa discussão, no Brasil, ainda é entendida como sacrilégio. A maioria dos médicos continua tentando até o final prolongar a vida do paciente, mesmo que isso signifique mais sofrimento. "Encher a pessoa de tubos e martirizá-la com tentativas heróicas de reanimação quando não adianta mais nada serve mais à consciência do médico do que ao paciente. É egoísmo", afirma a médica Beatriz de Camargo, especialista em câncer infantil e ardorosa defensora do que chama de "morte digna". Beatriz se depara freqüentemente com um dilema quando trata crianças: uma infecção que surge quando a doença já está na fase terminal. "Nesse caso, normalmente não tentamos curá-la. Tratamos apenas de dar conforto. Mas a decisão é do paciente e da família. Quando eles querem, temos que esgotar todos os recursos."
Mesmo alguns representantes da Igreja Católica, que tem uma postura radicalmente contrária à eutanásia, admitem a relevância desse tipo de discussão. É o caso do padre Léo Pessini, membro da Ordem de São Camilo o santo italiano que, no século XVI, cuidava dos doentes terminais e cujos seguidores são conhecidos como "os padres da boa morte" ("boa morte", aliás, é o significado em português da palavra grega "eutanásia"). "O tema é interessante porque traz à cena a questão da humanização da morte", diz Pessini, especialista em bioética (campo da filosofia que reflete sobre questões biológicas). Pessini, que conviveu de perto, por 12 anos, com doenças terminais era capelão do Hospital das Clínicas, em São Paulo-, refere-se também à tendência crescente da vida moderna, refletida na medicina tradicional, de virar as costas para a dor e a agonia. "Temos que aceitar que a vida tem um fim. Não existe cura para a morte", diz. Por mais incríveis que sejam os avanços da medicina, por mais futuristas que sejam as luzinhas e os bip-bips das UTIs, a morte, como reza o ditado, chega para todos.
A questão complica quando se começa a discutir quem é que decide como e quando a morte deve acontecer. Para a Igreja, não há dúvidas: Deus nos deu a vida e só cabe a Ele tirá-la. Não são só os cristãos, maioria no Brasil, que pensam assim - quase todas as grandes religiões acreditam na sacralidade da vida. Mesmo sem levar Deus em conta, no entanto, há outros argumentos usados freqüentemente para negar ao indivíduo o controle sobre essa decisão fundamental. "A vida não é um bem próprio, pessoal. Trata-se de um bem comunitário que pertence à sociedade", afirma o jurista Celso Ferenczi, professor de direitos humanos da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Para ele, a eutanásia não viola apenas a lei divina é uma afronta também à lei humana. "O que se chama de morte piedosa vai contra a declaração dos direitos humanos da ONU", diz. A declaração estabelece o direito fundamental à vida. Esse tipo de direito é inalienável, ou seja, não se pode abrir mão dele. Como os direitos humanos são cláusula pétrea de nossa Constituição, não podem ser modificados nem se todos os deputados votarem a favor - só uma nova Assembléia Constituinte teria poder para aboli-los. "A legalização da eutanásia seria inconstitucional", afirma Celso.
"Essa interpretação da Constituição é hipócrita. Na prática, não há vida quando não há perspectiva de vida com qualidade", afirma o senador Gilvam Borges, do PMDB do Amapá, autor do único projeto de lei sobre o assunto tramitando no Congresso um texto de 1996 nunca colocado em votação. Ele propõe que a eutanásia seja permitida desde que uma junta de cinco médicos ateste a inutilidade do sofrimento físico ou psíquico do doente. O próprio paciente teria que requisitar a eutanásia. Se não estiver consciente, a decisão caberia a seus parentes próximos. Nem o senador tem esperanças de que o projeto vingue. "Essa lei não tem nenhuma chance de ser aprovada", diz Gilvam.
Segundo o deputado federal Marcos Rolim, "ninguém quer discutir a eutanásia porque isso traz prejuízos eleitorais". Rolim, que é do PT gaúcho,
A situação é bem diferente nos Estados Unidos. Lá, como aqui, a eutanásia é proibida. O suicídio assistido também é ilegal em 49 dos 50 estados - apenas o Oregon permite que os médicos forneçam os comprimidos letais. Mas ninguém faz silêncio - o tema mobiliza dezenas de associações "pró-vida" (contra o suicídio assistido e a eutanásia) e "pró-escolha" (a favor). Esses últimos clamam pela liberdade do indivíduo em decidir seu destino. Aqueles alertam para um risco: legalizar a eutanásia abriria um precedente que acabaria justificando, mais adiante, a eutanásia não-consentida. Daí para a execução sumária de deficientes e um novo holocausto, defendem os ativistas "pró-vida", seria um passo.
O personagem mais famoso dessa guerra de opiniões é Jack Kevorkian, o "Doutor Morte". Médico idealista para uns, psicopata para outros, Kevorkian conduziu a morte assistida de 130 pessoas e hoje cumpre pena de prisão perpétua no Estado de Michigan, Estados Unidos . Um outro soldado da causa "pró-escolha" é Bry Benjamin, 76 anos, um clínico de Nova York especializado em saúde pública. No começo dos anos 70, quando a discussão sobre eutanásia era tão velada nos Estados Unidos quanto é hoje no Brasil, um casal de idosos o teria procurado. Os dois estavam com câncer e alegavam sofrer muito. Queriam que o médico os ajudasse a morrer. Benjamin conta que sofreu para tomar a decisão, mas acabou concordando. (Para sorte dele, nenhum promotor se animou a processá-lo.)
De lá para cá, o médico decidiu parar de desafiar a Justiça, mas continuou orientando os que desejam morrer. "Não há nenhuma lei que me proíba de conversar sobre a morte", diz. "Conversar", no caso, significa receber pacientes terminais e ensiná-los a realizar o suicídio. "Eu não convenço ninguém a morrer. Mas digo quais remédios eles devem tomar e onde eles podem encontrar as pílulas", diz Benjamin. Esse tipo de assistência, segundo ele, evita que o doente desesperado tenha que apelar para formas de suicídio mais dolorosas ou degradantes.
Um dos casos que Benjamin acompanhou foi o de uma mulher de 38 anos que enfrentava longas e desconfortáveis sessões de hemodiálise havia quase duas décadas. Um dia, segundo ele, ela o procurou e disse que não agüentava mais: queria parar. Benjamin teria respondido que não poderia dizer a ela o que fazer, mas que, se ela não fosse mais à hemodiálise, ele a ajudaria a não sofrer. Assim como no Brasil, nos Estados Unidos o paciente tem o direito de recusar um tratamento, ainda que isso implique na sua morte. A paciente parou com as sessões e morreu em casa, assistida pelo médico e, segundo ele, sem dor.
Outro militante "pró-escolha" é o escritor inglês Derek Humphry, um sujeito bem mais controvertido que Benjamin, embora não tanto quanto Kevorkian. Em 1975, quando Humphry trabalhava como repórter em um jornal de Londres, sua esposa Jean, depois de lutar por anos contra um doloroso câncer de mama, decidiu se render. Pediu ao marido que a ajudasse a morrer. Ele procurou um médico que entrevistara anos antes para uma reportagem e pediu que ele conseguisse a "pílula negra" (expressão usada para qualquer remédio que causa a morte.) Depois, deixou que Jean tomasse o veneno. Só houve tempo para que ela murmurasse "adeus, meu amor" antes de adormecer. Seu coração parou em 50 minutos.
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