A mentira ma história
Se para alguns a mentira não passa de um mundo de fantasia e ficção, para outros ela serve como artifício capaz de mudar o rumo da história. Afinal, a mentira acompanha a humanidade desde os primórdios - muitas vezes em benefício de grandes líderes.
Já no Egito antigo, a mentira foi um instrumento importante para a manutenção do poder do faraó Ramsés II. Em meados do século 13 a.C., as tropas egípcias lideradas pelo faraó lutaram contra outra potência da época, o Império Hitita, na batalha de Qadesh. O maior confronto envolvendo carruagens da história - cerca de 5 mil - terminou sem vencedor. Mas não para Ramsés II. Ao voltar para casa, ele cravou nas paredes de seus cinco grandes templos o relato de sua suposta vitória contra o inimigo. "Ramsés II afirmou ter vencido os hititas com a ajuda dos deuses", diz o historiador Julio Gralha, da UFRJ. "A mentira foi usada como propaganda política e religiosa."
Outro que soube manipular muito bem os fatos foi Napoleão Bonaparte. Nos idos de 1799, tudo parecia conspirar contra o general francês. O sonho de conquistar o Oriente Médio desvanecia com a humilhante derrota às margens do rio Nilo para o almirante inglês Horatio Nelson e com o fracasso na Síria. Mas o que parecia ser o sepultamento político e bélico de Bonaparte tornou-se a maior mentira política a favor de um grande líder. Habilmente, o general utilizou-se da imprensa da época para soprar aos quatro ventos suas "fantásticas vitórias" no Oriente. Ao retornar à França, Napoleão foi recebido como vitorioso e, em meio às convulsões sociais que atingiam o país, tomou o poder.
Mas não precisamos voltar tanto assim no tempo para perceber como a mentira e o poder sempre caminham de mãos dadas. Quem não se lembra do famoso episódio envolvendo Bill Clinton, Monica Lewinski e um charuto? No início, o ex-presidente americano negou de pés juntos o affair com sua então estagiária. Mas, sob a ameaça de impeachment, teve de voltar atrás em seus "causos". "Bill Clinton foi um gênio da prática da mentira", diz Ralph Keyes. "Isso não foi somente no caso da maconha (que ele afirmou ter fumado sem tragar) e de Monica Lewinsky. Ele também foi um grande prevaricador quando disse recordar-se de ‘memórias vívidas e dolorosas de igrejas negras sendo queimadas em meu estado natal quando era criança’. Nunca houve nenhum registro de uma igreja negra incendiada em Arkansas."
Apesar de tantas mentiras e posteriores confissões públicas, Clinton segue sendo um dos homens mais admirados em todo o mundo. Isso, segundo Keyes, é um sintoma do que ele chama de "era da pós-verdade". Para ele, estamos mentindo mais do que nunca, sem vergonha na cara e sem remorso. "Mentir se tornou um desafio, um jogo, um hábito", afirma o escritor.
Mentir ou não mentir
É provável que esses grandes líderes mentirosos tenham lido a "cartilha da mentira" do filósofo grego Platão. Em sua obra A República, ele defende o uso da mentira na política e afirma que os governantes têm o direito de não dizer a verdade para os cidadãos. "Se compete a alguém mentir, é aos líderes da cidade, no interesse da própria cidade, em virtude dos inimigos ou dos cidadãos", escreveu o filósofo grego, com uma ressalva: "A todas as demais pessoas não é lícito esse recurso".
Para a sorte de nós, mentirosos, o homem vem tentando justificar ao longo dos séculos nossa tendência de escorregar em declarações falsas no dia-a-dia. Afinal, quem já não encontrou um amigo depois de acordar atrasado para o trabalho, bater o dedinho no pé da cama e perder o ônibus e ainda dizer que "está tudo bem"? Relaxe: isso não passa de uma dissimulação honesta e aceitável. Pelo menos é o que dizia o filósofo italiano Torquato Accetto.
Em 1641, Accetto afirmava que muitas vezes a verdade é mais prejudicial que a mentira desde que se trate de uma mentira honesta. Na sua visão, não é adequado um indivíduo que vive sob uma ditadura ir à praça pública e gritar que o governo está entregue a um tirano. Ele pode dissimular sua crítica e sua mentira será honesta, segundo o italiano. "Essa idéia está ligada à noção de decoro, ou seja, aquilo que pode ou não ser dito em público", afirma Roberto Romano, professor de ética e filosofia política da Unicamp.
Essa também era a opinião do pensador francês Benjamin Constant, que acabou travando um verdadeiro duelo na ponta da pena com seu companheiro alemão Immanuel Kant sobre um suposto "direito de mentir". Constant defendeu o uso da mentira em situações "filantrópicas". Ora, imagine se, um dia, um assassino o questionasse sobre a presença em sua casa de um amigo que lá tivesse buscado refúgio. É provável que você mentisse. E, para o filósofo francês, com todo o direito, pois protegeria a vida de seu amigo. O argumento não convenceu Kant, para quem a mentira era inadmissível em qualquer circunstância. Segundo ele, a verdade está na base do direito, que assegura a liberdade de todos os indivíduos. Kant afirmava que a mentira sempre prejudica, se não a uma pessoa ou um grupo de pessoas, certamente à humanidade como um todo.
Mais tarde, no século 19, o alemão Friedrich Nietzsche deixaria o homem ainda mais confuso não apenas em relação à mentira, mas também em relação a sua própria existência. Segundo ele, nós precisamos da mentira para viver nesse mundo "falso, cruel, contraditório, persistente e absurdo; mundo esse que é o mundo verdadeiro". Ou seja, na penosa tarefa de viver essa realidade, o homem precisa da mentira. O mundo que vemos é ilusão e o conhecimento - a filosofia e a ciência - é uma invenção do homem para tentar explicar o mistério do Universo.
Uma vez que a filosofia e a ciência ainda não desvendaram todas as facetas da falsidade humana, nós seguimos mentindo - provavelmente nunca vamos parar. Que o diga a gorila Koko, que, integrada à nossa sociedade, aprendeu a arte da dissimulação.
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