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O DIREITO DE MORRER (PARTE 1)


A gaúcha Eulália era uma senhora ativa que não parava em casa. Aos 63 anos, perdeu o marido. Dali em diante, sua vida mudou. Era vista pedindo a Deus que a levasse logo. Foi acometida de uma osteoporose e ficava cada vez mais tempo na cama, definhando, gemendo de dor. Com os anos, perdeu a lucidez e passou a confundir até os rostos mais familiares. Teve que começar a usar fraldas. E chorava com a humilhação de depender dos parentes para tudo. Matriarca de uma família de médicos, dona Eulália foi bem assistida. Aos 75 anos, seu quarto se transformou em um leito de hospital. Ela passou a se alimentar por sonda, a receber soro. Até que entrou em coma, vítima de mau funcionamento dos órgãos e da alimentação insuficiente.

Um dia, um dos médicos da família observou seus reflexos e concluiu que, embora o coração continuasse batendo firme e a respiração não desse sinais de fraqueza, dona Eulália jamais se recuperaria do coma. A profissão lhe dava acesso a medicamentos controlados e ele conseguiu morfina. Um dos parentes aplicou a injeção no braço da doente. A respiração dela foi ficando cada vez mais espaçada. Quinze minutos depois, dona Eulália inspirou suavemente. Nunca mais soltaria o ar.

Essa história é verdadeira, exceto pelo nome da paciente. Aconteceu em 1995. Se tivéssemos publicado o nome real de dona Eulália, os parentes dela poderiam ser processados por homicídio. A pena acabaria atenuada pelo fato de o crime ter sido cometido "por relevante valor social ou moral", como prevê o Código Penal. Mesmo assim, o médico que aplicou a injeção arriscaria passar de quatro a 17 anos na cadeia. Além disso, seria julgado pelo conselho de medicina local, que certamente cassaria sua licença e o proibiria de exercer a profissão. (No atestado de óbito de dona Eulália lê-se "morte natural".)

Ninguém sabe dizer se casos como esse são uma raridade no Brasil ou se são, por aqui, tão comuns quanto na Holanda - onde pelo menos 3,5% das mortes anuais são apressadas por um médico. Lá, na terra dos moinhos e dos tamancos, a Câmara Alta (que equivale ao nosso Senado) prepara-se para votar, uma lei que vai legalizar a eutanásia morte provocada pelo médico, com o consentimento do paciente, quando o sofrimento físico ou psíquico é incurável e insuportável e o suicídio assistido morte nas mesmas circunstâncias, só que provocada pelo próprio paciente.

"A aprovação é quase certa, já que 92% da população é a favor da legalização da eutanásia", diz o professor de medicina social Gerrit van der Wal, da Universidade Livre de Amsterdã. A Câmara Baixa daquele país (equivalente à nossa Câmara dos Deputados), já tinha votado a favor da nova lei. Mas, mesmo antes, eutanásia e suicídio assistido eram tolerados na Holanda. É que, em 1993, entrou em vigor uma lei que garantia que nenhum médico seria processado por realizar a eutanásia desde que seguisse algumas regras e que comunicasse tudo à Justiça. Em 1995, uma enorme pesquisa foi feita na Holanda. Os médicos tinham a garantia de que não seriam processados se falassem a verdade. O resultado: de um total anual de 140 000 óbitos, 3 600 tinham ocorrido por meio de eutanásia autorizada pelo doente, 400 por suicídio assistido e 900 por eutanásia não-consentida (sem a concordância explícita do paciente, por ele estar em coma irreversível, por exemplo, como aconteceu com dona Eulália algo que a nova lei holandesa não prevê e que provavelmente continuará proibido naquele país).

Enquanto isso, por aqui, ninguém toca no assunto. Nem nos corredores dos hospitais, nem nas salas dos tribunais nem nos laboratórios das universidades. Raramente se discute a eutanásia no Congresso ou nas páginas dos jornais. É como se essa questão, que desafia a ética e a medicina, não existisse. Só que ela existe. Como em qualquer lugar, no Brasil tem gente que acha que tem o direito de escolher como e quando quer morrer. E como em qualquer outro país, aqui se pratica a eutanásia. Em que medida, não é possível dizer. É que não há dados. Eis o grande problema causado pelo silêncio que se faz a respeito no país: a falta de informação. Como resultado, as opiniões sobre o tema, quando há, são poucas e pouco informadas.

Uma sondagem na internet aponta um empate técnico no cenário brasileiro: 50,4% dos 14 915 internautas que responderam à enquete se puseram contra a legalização da eutanásia e 49,6%, a favor. No Canadá, 76% da opinião pública é a favor. Na Austrália, 81%. Nos Estados Unidos, 57%.

Mais números relevantes: de acordo com uma grande pesquisa realizada em 1997 por várias universidades americanas em hospitais daquele país, 40% das pessoas morrem sentindo dores insuportáveis; 80% enfrentam fadiga extrema; e 63% passam por grande sofrimento físico e psíquico ao deixar a vida. Não há razões para crer que a situação seja diferente no Brasil, onde, pelo menos nas grandes cidades, se pratica o mesmo tipo de medicina e as causas de morte são semelhantes. Ou seja: a morte tem sido, na maioria dos casos, uma experiência dramática e dolorosa. Daí a importância de discutir a eutanásia: será que você tem o direito de morrer de outro jeito?

Um dos motivos pelos quais não se fala muito a respeito, especialmente no ambiente médico, apesar de o tema interessar a todo mundo, é o dinheiro. Queiramos ou não, morrer custa caro. Definhar num hospital, sai, em média, 2 000 reais ao dia seis vezes mais se for numa UTI. (Nos Estados Unidos, 75% das mortes ocorrem em hospitais e um em cada três pacientes terminais passam pelo menos 10 dias em UTIs.) Nos seus últimos seis meses, segundo Daniel Deheinzelin, diretor clínico do Hospital do Câncer, em São Paulo, o paciente torra, em média, com médicos, remédios e hospitais, mais do que gastou com saúde em toda a sua vida. Nos Estados Unidos, segundo pesquisa recente da Time/CNN, nada menos do que um terço das pessoas leva a família à falência ao morrer.

"O fato, inegável, é que os recursos para a saúde são finitos e temos que decidir como gastá-los da melhor maneira possível", diz Daniel. "Ignorar essa discussão é hipocrisia." Ele se refere àqueles casos em que se sabe que o tratamento não vai resolver nada e em que ele é levado adiante mesmo assim. "Às vezes, isso é feito para o médico poder dizer à família que tentou de tudo. Às vezes, é para cobrar mais", diz Daniel. "Antes de discutir a legalização da eutanásia, temos que ter a coragem de estabelecer critérios claros para interromper tratamentos que não estão funcionando ou para não começar novos."

Na Inglaterra, essa discussão está pegando fogo. O governo acaba de resolver que não pagará mais hemodiálise para pessoas acima de 65 anos. Os britânicos sabem que, com isso, muita gente vai morrer. Mas decidiram que o dinheiro, um recurso sempre limitado, seria mais útil se investido, por exemplo, numa campanha antifumo, que tende a salvar um número bem maior de vidas. "Não estou dizendo que os ingleses estejam certos", diz Daniel. "Mas não adianta fugir da discussão, como se houvesse leitos, médicos e equipamento para todo mundo."

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