Foi um dia de trabalho como outro qualquer. Depois da festa da Páscoa do ano 3790 do calendário hebraico, a maioria dos camponeses seguia sua rotina normalmente, assim como os coletores de impostos, os pescadores, os soldados romanos, os carpinteiros, os sacerdotes e as prostitutas. Em Jerusalém, contudo, algumas pessoas deviam estar comentando o tumulto do dia anterior, que resultou na morte de um judeu. Nada que não estivessem acostumados a ouvir. Naquele tempo, a cidade já era palco de conflitos político-religiosos sangrentos e quase sempre algum agitador morria por incitar a rebelião contra os romanos, que governavam a região com o apoio da elite judaica do templo de Jerusalém.
Dessa vez, o fuzuê foi causado por um judeu camponês chamado Yeshua, que foi aprisionado e condenado à morte por ter desafiado o poder romano e o templo de Jerusalém em plena Páscoa. "Se você quisesse chamar a atenção de multidões para as suas idéias, essa era a data ideal", afirma Richard Horsley, professor de Ciências da Religião na Universidade de Massachusetts e autor do livro Bandidos, Profetas e Messias - Movimentos Populares no Tempo de Jesus. "A festa tinha um forte conteúdo político, já que comemorava a libertação dos hebreus do Egito, que agora estavam sob o domínio dos romanos." No meio da multidão (imagine a cidade paulista de Aparecida do Norte em dia de peregrinação), pouca gente deve ter se comovido com a prisão e morte de mais um judeu agitador a não ser um punhado de parentes e amigos pobres.
Mas nem eles poderiam imaginar que a cruz em que Jesus pagou sua sentença (sim, Yeshua é Jesus em hebraico) seria, no futuro, o símbolo mais venerado do mundo. Da suntuosa Basílica de São Pedro, no Vaticano, à pequena igrejinha da Assembléia de Deus, encravada no interior da Floresta Amazônica, a cruz se tornou o símbolo de fé para mais de 2 bilhões de pessoas. Sua morte dividiu, literalmente, a história em antes e depois dele. Mas, afinal, quem foi Jesus?
Pode parecer estranho, mas para os estudiosos há pelo menos dois Jesus. O primeiro, que dispensa apresentações, é o Cristo (o ungido, em grego), cuja história contada pelos quatro evangelistas deixa claro que ele é o enviado de Deus para salvar os homens com a sua morte. Os judeus costumavam sacrificar animais como cordeiros no templo para se purificarem. Ao morrer na cruz, Cristo torna-se o símbolo do cordeiro enviado por Deus para tirar o pecado do mundo.
O outro Jesus, já citado no início da postagem, é Yeshua, o homem que morreu sem chamar muita atenção dos cidadãos do Império Romano. Além dos evangelhos que não podem ser considerados fontes imparciais de sua vida, já que foram escritos por seus seguidores há apenas uma menção direta a ele citada pelo historiador judeu Flávio Josefo, que escreve sobre sua morte no livro Antiguidades Judaicas, feito provavelmente no fim do século 1. Para os pesquisadores, essa falta de citações seria um indício da pouca repercussão que Jesus teria tido para os cronistas da época. "Se existisse um grande jornal em Israel no tempo de Jesus, sua morte provavelmente seria noticiada no caderno de polícia, e não na primeira página", diz John Dominic Crossan, professor de Estudos Religiosos da Universidade De Paulo, em Chicago, Estados Unidos.
Autor dos livros O Jesus Histórico A Vida de um Camponês Judeu no Mediterrâneo e Excavating Jesus Beneath The Stones, Behind The Texts ("Escavando Jesus Por Baixo das Pedras, Por Trás dos Textos", inédito no Brasil), ele diz que a escassez de fontes diretas sobre Jesus não significa que seja impossível recompor a vida do homem de carne e osso que morreu em Jerusalém. "A interpretação correta dos textos históricos e a arqueologia estão trazendo surpreendentes revelações sobre o Jesus histórico."
Uma dessas revelações pode estar contida numa pequena caixa de pedra cor de areia encontrada em Jerusalém com uma inscrição feita em língua e caligrafia de 2 mil anos atrás. Ao lê-la em aramaico, da direita para esquerda, como a maioria das línguas semitas, está escrito inicialmente "Yaákov, bar Yosef", ou seja: Tiago, filho de José. E continua, mais desgastada, "akhui di..." irmão de "Yeshua", Jesus. Isso mesmo. Segundo André Lemaire, especialista em inscrições do período bíblico da Universidade de Sorbonne, em Paris, há uma alta probabilidade de que a caixa tenha sido usada como ossário de Tiago (São Tiago, para os católicos), o mesmo do Novo Testamento, já que a possibilidade que a associação entre esses três nomes seja uma referência a outras pessoas é estatisticamente baixa.
Apesar de não ter sido encontrada num sítio arqueológico (como foi comprada por um colecionador num antiquário, as chances de fraude seriam maiores), ela poderá se tornar a primeira evidência material associada a Jesus. "Caso fique provado que a inscrição é verdadeira, a descoberta levantará uma série de novas questões", diz Crossan. "Vamos ter que nos perguntar, por exemplo, se termos como irmão e pai significam exatamente o mesmo que hoje: pai e irmão de sangue.
Apesar de o Evangelho de São Mateus, no capítulo 13, versículos 55-56, citar: "Porventura não é este o filho do carpinteiro? Não se chamava sua mãe Maria, e seus irmãos Tiago, e José, e Simão, e Judas: e suas irmãs não vivem elas todas entre nós?", a Igreja sempre pregou aos fiéis que irmão e irmã, nesse caso, significavam apenas primos ou um forte vínculo de amizade e companheirismo entre os que faziam parte de um grupo.
"Como esse é um campo cheio de fé e paixões, a busca do Jesus histórico sempre foi um desafio", diz André Chevitarese, professor de História Antiga da Universidade Federal do Rio de Janeiro e um dos maiores especialistas sobre o tema no país. "Enquanto um religioso conservador ressalta a dimensão espiritual de Jesus, um teólogo da libertação vai buscar nele sua atuação como revolucionário político."
Mesmo que a diversidade de visões de Jesus seja proporcional ao número de igrejas, correntes e seitas que existem em seu nome, historiadores e arqueólogos estão conseguindo reconstituir como era o mundo em que ele vivia: um retrato fascinante da política, da religião, da economia, da arquitetura e dos hábitos cotidianos que devem ter moldado a vida de um homem bem diferente daquele retratado pelas imagens renascentistas que povoam a imaginação da maioria dos cristãos. A começar pela aparência. Baseados no estudo de crânios de judeus que viviam na região na época, os pesquisadores dizem que a fisionomia de Jesus deveria ser mais próxima da de um árabe moderno. "Em tempos turbulentos como o de hoje, ele provavelmente teria dificuldades de passar pela alfândega de um aeroporto europeu ou americano", diz Chevitarese.
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