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Entrevista concedida a Veja (12/12/1973), a Maria Helena Dutra(Bidu Sayão), ao visitar o Brasil, depois de 20 anos morando no exterior.- Final


Veja - Um ano depois de tão súbita decisão você voltou a cantar e chegou mesmo a gravar com Villa-Lobos "A Floresta Amazônica". Saudades?
BIDU - Fiquei um ano sem cantar, sem abrir a boca, sem vocalizar. Até que meu amigo Villa e sua mulher, a Mindinha, chegaram aos Estados Unidos. Villa tinha ido compor a trilha sonora do filme "Green Mansions", com Audrey Hepburn. A fita foi um fiasco. E, da música do Villa, sobraram só uns 10 minutos. Ele ficou indignado, eu nunca o vi tão amolado. Decidiu, então. gravar a obra, e me pediu que o ajudasse. Eu estava há um ano
afastada. E só aceitei porque tive o pressentimento de que aquela seria a última gravação do Villa. E foi.

Veja - O fato de seu primeiro marido, Walter Mocchi, ter sido empresário, e o segundo, Giuseppe Danise, ter sido um barítono de fama, não foi fundamental para o sucesso de sua carreira?
BIDU - Para se fazer uma carreira internacional é preciso ter perseverança, sorte e alguém que dê o impulso inicial, pois os empresários nunca querem principiantes. O fato de meu primeiro marido ter sido empresário, contudo, em nada contribuiu para o início da minha carreira internacional. Eu estreei, em 1927, no Teatro Constanza, de Roma, após ter feito uma série de audições para seus responsáveis. Consegui a chance porque tinha sido aluna de Jean De Rezky, em Nice, França, a única sul-americana que ele aceitou para ensinar. Só dois anos depois, 1929, é que me casei com Walter, um sonhador, homem riquíssimo, que botava tudo que tinha no teatro. Quanto aos Estados Unidos, foi o maestro Arturo Toscanini, que conheci no Scala de Milão, quem me abriu as portas do Metropolitan. Ele queria uma voz especial e etérea para interpretar a "Demoiselle Elue" de Debussy. Tinha escutado todas as sopranos da América sem encontrar o que pretendia. Eu nem sabia disso, até que tivemos uma conversa sem compromissos. Aí, ele me levou para cantar o poema no Metropolitan,
num concerto do qual participaram todas as pessoas importantes da cidade. Afinal, apesar de desconhecida, e de nome exótico, eu era apresentada por Toscanini. Mais ainda, tive a sorte de cantar no ano do afastamento da soprano Lucrezia Bori, que tinha quase as mesmas características de voz. Assim mesmo, porém, até ser contratada pelo Metropolitan, ainda fiz mais duas audições. Seus responsáveis achavam que minha voz era pequena para o teatro e eu tive de demonstrar que podia atingir até as últimas poltronas. Dois anos depois, em 1939, separei-me de Walter e pouco tempo depois casei-me com Danise que, durante quinze anos foi barítono do Metropolitan e depois se tornou, até morrer, em 1963, um grande professor. Através de estudo e muito
exercício, ele foi o responsável pelo desenvolvimento de minha voz.

Veja - Mas por que mesmo depois de se retirar você preferiu os Estados Unidos ao Brasil?
BIDU - Preferi não é bem o termo. Tanta coisa aconteceu comigo que meus amigos brasileiros, nesta visita, depois de informados dos meus azares, passaram apenas a me dar figas como presente. Ao abandonar o canto, fiquei vivendo em Nova York, junto a meu marido, que dava aulas. Passávamos o tempo livre em nossa ampla casa no Maine, no norte do país, perto do Canadá. Em 1963, Danise morreu e fiquei desorientada.
Percebi que não tinha a menor experiência com relação a nenhum problema prático. Não sabia fazer nada, só assinava cheques. Tive só duas fraquezas: uma com peles e outra com jóias. Pensando assim, vivíamos nossos calmos e tranqüilos dias quando ele morreu. O choque foi tanto que perdi 18 quilos em um mês. Mas sobrevivi
por causa da minha mãe. Até que em 1966 ela morreu, aos 94 anos. Senti-me abandonada no mundo. Horrível. Tinha dinheiro mas nenhuma felicidade. Passei a ter taquicardia, palpitações, suor frio e pulso irregular. Mas meu cardiologista não constatou nenhum problema mais grave. Era tudo angústia, nervosismo e preocupação.
Fiquei com medo de vir ao Brasil e morrer de uma emoção mais forte. Depois fui me habituando a viver sozinha. E passei a dedicar carinho especial à minha casa, às minhas lembranças e saudades. Mas, certo dia, em junho de 1969, sai para fazer umas compras, com o meu empregado, misto de caseiro, jardineiro, chofer, tudo enfim, que me serve há 22 anos. Estava apenas com um slack sem uma jóia, sem nada. Na volta, vimos de longe uma densa neblina. Mas quando cheguei perto não pude mais me enganar. O fogo estava destruindo minha casa. Nada foi possível fazer. Perdi tudo. As jóias que minha mãe tinha me dado, uma medalha feita pelo próprio Caruso com uma caricatura sua, minhas tapeçarias, móveis, lembranças, diplomas, placas, tudo. Provocado por um curto-circuito, o fogo acabou com as recordações de toda a minha vida. Só se salvou um anel de água marinha brasileira. Mas reconstruí tudo, a casa estava no seguro e o prejuízo financeiro não foi tão grande assim.

Veja - E então conseguiu um pouco de tranqüilidade?
BIDU - Minha filha, quando me dão figas é porque têm razão. Ainda não acabou, não. A casa ficou pronta em 1970. Dois anos depois ladrões estiveram lá e levaram tudo. Só não tocaram no que tinha as iniciais B.S. Mas de resto fizeram um limpíssimo trabalho profissional. Como podia vir para o Brasil me divertir?

Veja - Mesmo no seu retiro você acompanha a vida musical dos Estados Unidos? E a ópera, seria um gênero em decadência?
BIDU - Hoje a ópera não mais me diverte. Ainda existem espetáculos bonitos. Mas o teatro lírico está realmente um pouco decadente e fora de moda. Não por culpa do gênero que é eterno, mas pela insistência nos erros. O principal na ópera e o canto. Mal cantada, vira uma caricatura. Os jovens de hoje, porém, mesmo alguns mais antigos, não têm paciência de estudar muito, ou a modéstia de se guardar apenas para os papéis que sejam adequados à sua voz e sensibilidade. Querem fazer tudo rápido e aparecer muito para ficarem ricos e famosos depressa. Isto mata a ópera e seus melhores talentos. Monteserrat Caballé, minha cantara preferida, e Joan Sutherland são exceções nestas comédias de erros. Duas vítimas do mal que lhe falei antes são Maria Callas e
Renata Tebaldi. Cantaram demais e em todo os gêneros de ópera: dramática, lírica, ligeira. Dizem que o problema de Callas foi sua gordura e o tratamento rigoroso a que se submeteu. Mas não é verdade. Foi a pressa. Aliás, outra mentira histórica da ópera é se dizer que os gordos têm a melhor voz. Bobagem. Mas insistem nesta mentira e o resultado são feias figuras no palco numa hora que os jovens estão habituados a
outra estética. Se a ópera insistir nessa tecla e nas montagens ultrapassadas, vai realmente acabar.

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