Um livro que nos leva confortavelmente
na garupa e que, no caminho, vai nos
revelando o mais sagrado
Em 1974, um professor de redação de Minneapolis, Estados Unidos, decidiu escrever sobre suas viagens de moto com o filho e um casal de amigos, John e Sylvia. Era o que o mundo queria: Zen e a Arte da Manutenção de Motocicletas virou um cult. Montado na máquina, Robert M. Pirsig volta a atenção para si mesmo e racionaliza sobre a existência humana, nos levando por estradinhas e descobrindo paisagens - as externas e as outras. Em inúmeros momentos ele nos faz pensar de maneira diferente. "Buda, a divindade, mora tão confortavelmente nos circuitos de um computador digital ou nas engrenagens de uma transmissão de motocicleta quanto no pico de uma montanha ou nas pétalas de uma flor." Como dá para perceber, não é um livro que deva ser associado à prática ortodoxa do Zen-Budismo, como está anotado logo nas primeiras páginas, mas uma investigação sobre valores. E como você vai descobrir nestes trechos do primeiro capítulo, trata-se de uma investigação sobre valores muito inspirada. Para ler sem capacete.
Pelo meu relógio, sem soltar o punho esquerdo do guidom da motocicleta, vejo que são oito e meia da manhã. O vento, embora estejamos a 90 por hora, é morno e úmido. Se às oito e meia o tempo já está assim, abafado e quente, imagine como não estará à tarde´
O vento traz um cheiro acre dos pântanos que margeiam a estrada. Estamos numa região das Planícies Centrais com milhares de charcos, onde é permitida a caça dos patos, e rumamos para noroeste, de Minneapolis para as Dakotas. Nesta rodovia antiga, de duas pistas, o movimento diminuiu bastante desde que inauguraram ao lado uma auto-estrada de quatro pistas, há vários anos. Quando passamos por um pântano, o ar refresca um pouco; depois, torna subitamente a esquentar.
É bom viajar de novo pelo interior. Esta é uma espécie de terra de ninguém, sem notoriedade alguma, e é justamente isso que atrai nela. Ao longo dessas estradas velhas, a gente se descontrai. E seguimos aos solavancos pelo concreto desnivelado, entre rabos-de-gato e trechos de campinas, mais rabos-de-gato e capim-do-brejo. De vez em quando, aparece uma certa extensão de água; se a gente olhar com atenção, consegue ver os patos selvagens, perto dos rabos-de-gato. E as tartarugas também´ Um melro de asas vermelhas!
Quando a gente passa as férias viajando de moto, vê as coisas de um jeito completamente diferente. De carro, a gente está sempre confinado e, como já estamos acostumados, nem notamos que tudo o que vemos pela janela não passa de mais um programa de televisão. Sentimo-nos como um espectador, a paisagem fica passando monotonamente na tela, fora do nosso alcance.
Já na motocicleta não há limites. Fica-se inteiramente em contato com a paisagem. A gente faz parte da cena, não fica mais só assistindo, e a sensação de estar presente é esmagadora. Aquele concreto zunindo a uns 15 centímetros da sola dos pés é real, é o chão onde se pisa, está bem ali, tão indistinto devido à velocidade que nem se pode fixar a vista nele; e, no entanto, para tocá-lo basta esticar o pé. A gente nunca se desliga daquilo que está acontecendo.
As melhores estradas
Queremos aproveitar o tempo mas, no momento, concentramo-nos mais no "aproveitar" do que no "tempo". Com essa mudança de ênfase, muda também toda a perspectiva. As estradas sinuosas e íngremes são mais longas em termos de tempo, mas bem mais agradáveis de percorrer numa moto, onde a gente se inclina nas curvas, do que de carro, onde se é jogado de um lado para outro dentro de um compartimento.
As estradas menos movimentadas, além de mais agradáveis são também mais seguras. As melhores estradas são aquelas sem drive-in nem anúncios, onde se vêem árvores, pastos, pomares e capinzais que chegam até a beira do acostamento, onde as crianças acenam quando a gente passa, onde as pessoas espiam das varandas para ver quem é, onde a gente pára para pedir uma orientação ou uma informação e a resposta geralmente é muito mais longa do que se espera, onde as pessoas perguntam de onde você está vindo e há quanto tempo está viajando.
Foi há alguns anos que minha mulher, eu e meus amigos começamos a compreender essas estradas. Entrávamos por elas de vez em quando, para variar um pouco, ou para alcançar outra via principal. Ao fazê-lo, gozávamos a paisagem magnífica e saíamos com uma sensação de relaxamento e prazer. Fizemos isso vezes sem conta, até percebermos o óbvio: essas estradas eram mesmo diferentes das principais.
A personalidade e o ritmo de vida das pessoas que ali moravam eram completamente diferentes. São seres que não têm objetivos rígidos. Não estão ocupados demais para serem gentis. Sabem tudo sobre o "aqui" e "agora". Foram os outros, os que se mudaram para a cidade anos atrás, e seus filhos perdidos, que quase se esqueceram disso tudo.
Fico pensando por que levamos tanto tempo para compreender. Víamos tudo e, no entanto, nada víamos. Ou melhor, estávamos acostumados a não ver, orientados para crer que a verdadeira atividade é a metropolitana e que tudo isso era apenas uma roça sem graça. Coisa intrigante. A verdade batendo à nossa porta e a gente respondendo: "Vá andando, estou em busca da verdade". E aí ela vai embora. Realmente incrível.
Mas, ao alcançar a compreensão, decidimos que nada nos faria deixar essas estradas, fins de semana, tardes, férias. Passamos a ser verdadeiros aficionados dos passeios de moto em estradas secundárias e descobrimos nessas viagens que havia muita coisa para aprender.
Aprendemos, por exemplo, a localizar estradas boas no mapa. Se a linha for sinuosa, é boa. Significa que há morros. Se a linha parece representar a rota principal de uma cidadezinha para uma cidade maior, a estrada não serve.
As melhores geralmente são aquelas que ligam localidades sem grande importância, variantes de uma via que corta caminho. Se você estiver saindo de uma cidade grande na direção noroeste, nunca siga a estrada durante muito tempo. Saia e comece a dar voltas, indo para o norte, depois para o leste, voltando a seguir para o norte; logo você se achará numa estrada secundária, usada apenas pelos habitantes do lugar.
Nos fins de semana prolongados viajamos horas seguidas nessas estradas, sem ver nenhum outro veículo e, ao cruzar uma rodovia federal, observamos a longa fila de carros engarrafados até a linha do horizonte; dentro dos carros, rostos carrancudos. E crianças berrando no banco traseiro. Fico querendo encontrar um jeito de lhes dizer alguma coisa, mas eles estão de cara fechada, parecem apressados e não dá´
A menos que você goste de gritar, não poderá conversar enquanto anda de moto. Em vez disso, passa o tempo tomando consciência das coisas e refletindo sobre elas: o panorama, os sons, o tempo, recordações, a moto, a região onde está. A gente pensa nas coisas com muita calma e vagar, sem pressa, sem a sensação de estar perdendo tempo.
na garupa e que, no caminho, vai nos
revelando o mais sagrado
Em 1974, um professor de redação de Minneapolis, Estados Unidos, decidiu escrever sobre suas viagens de moto com o filho e um casal de amigos, John e Sylvia. Era o que o mundo queria: Zen e a Arte da Manutenção de Motocicletas virou um cult. Montado na máquina, Robert M. Pirsig volta a atenção para si mesmo e racionaliza sobre a existência humana, nos levando por estradinhas e descobrindo paisagens - as externas e as outras. Em inúmeros momentos ele nos faz pensar de maneira diferente. "Buda, a divindade, mora tão confortavelmente nos circuitos de um computador digital ou nas engrenagens de uma transmissão de motocicleta quanto no pico de uma montanha ou nas pétalas de uma flor." Como dá para perceber, não é um livro que deva ser associado à prática ortodoxa do Zen-Budismo, como está anotado logo nas primeiras páginas, mas uma investigação sobre valores. E como você vai descobrir nestes trechos do primeiro capítulo, trata-se de uma investigação sobre valores muito inspirada. Para ler sem capacete.
Pelo meu relógio, sem soltar o punho esquerdo do guidom da motocicleta, vejo que são oito e meia da manhã. O vento, embora estejamos a 90 por hora, é morno e úmido. Se às oito e meia o tempo já está assim, abafado e quente, imagine como não estará à tarde´
O vento traz um cheiro acre dos pântanos que margeiam a estrada. Estamos numa região das Planícies Centrais com milhares de charcos, onde é permitida a caça dos patos, e rumamos para noroeste, de Minneapolis para as Dakotas. Nesta rodovia antiga, de duas pistas, o movimento diminuiu bastante desde que inauguraram ao lado uma auto-estrada de quatro pistas, há vários anos. Quando passamos por um pântano, o ar refresca um pouco; depois, torna subitamente a esquentar.
É bom viajar de novo pelo interior. Esta é uma espécie de terra de ninguém, sem notoriedade alguma, e é justamente isso que atrai nela. Ao longo dessas estradas velhas, a gente se descontrai. E seguimos aos solavancos pelo concreto desnivelado, entre rabos-de-gato e trechos de campinas, mais rabos-de-gato e capim-do-brejo. De vez em quando, aparece uma certa extensão de água; se a gente olhar com atenção, consegue ver os patos selvagens, perto dos rabos-de-gato. E as tartarugas também´ Um melro de asas vermelhas!
Quando a gente passa as férias viajando de moto, vê as coisas de um jeito completamente diferente. De carro, a gente está sempre confinado e, como já estamos acostumados, nem notamos que tudo o que vemos pela janela não passa de mais um programa de televisão. Sentimo-nos como um espectador, a paisagem fica passando monotonamente na tela, fora do nosso alcance.
Já na motocicleta não há limites. Fica-se inteiramente em contato com a paisagem. A gente faz parte da cena, não fica mais só assistindo, e a sensação de estar presente é esmagadora. Aquele concreto zunindo a uns 15 centímetros da sola dos pés é real, é o chão onde se pisa, está bem ali, tão indistinto devido à velocidade que nem se pode fixar a vista nele; e, no entanto, para tocá-lo basta esticar o pé. A gente nunca se desliga daquilo que está acontecendo.
As melhores estradas
Queremos aproveitar o tempo mas, no momento, concentramo-nos mais no "aproveitar" do que no "tempo". Com essa mudança de ênfase, muda também toda a perspectiva. As estradas sinuosas e íngremes são mais longas em termos de tempo, mas bem mais agradáveis de percorrer numa moto, onde a gente se inclina nas curvas, do que de carro, onde se é jogado de um lado para outro dentro de um compartimento.
As estradas menos movimentadas, além de mais agradáveis são também mais seguras. As melhores estradas são aquelas sem drive-in nem anúncios, onde se vêem árvores, pastos, pomares e capinzais que chegam até a beira do acostamento, onde as crianças acenam quando a gente passa, onde as pessoas espiam das varandas para ver quem é, onde a gente pára para pedir uma orientação ou uma informação e a resposta geralmente é muito mais longa do que se espera, onde as pessoas perguntam de onde você está vindo e há quanto tempo está viajando.
Foi há alguns anos que minha mulher, eu e meus amigos começamos a compreender essas estradas. Entrávamos por elas de vez em quando, para variar um pouco, ou para alcançar outra via principal. Ao fazê-lo, gozávamos a paisagem magnífica e saíamos com uma sensação de relaxamento e prazer. Fizemos isso vezes sem conta, até percebermos o óbvio: essas estradas eram mesmo diferentes das principais.
A personalidade e o ritmo de vida das pessoas que ali moravam eram completamente diferentes. São seres que não têm objetivos rígidos. Não estão ocupados demais para serem gentis. Sabem tudo sobre o "aqui" e "agora". Foram os outros, os que se mudaram para a cidade anos atrás, e seus filhos perdidos, que quase se esqueceram disso tudo.
Fico pensando por que levamos tanto tempo para compreender. Víamos tudo e, no entanto, nada víamos. Ou melhor, estávamos acostumados a não ver, orientados para crer que a verdadeira atividade é a metropolitana e que tudo isso era apenas uma roça sem graça. Coisa intrigante. A verdade batendo à nossa porta e a gente respondendo: "Vá andando, estou em busca da verdade". E aí ela vai embora. Realmente incrível.
Mas, ao alcançar a compreensão, decidimos que nada nos faria deixar essas estradas, fins de semana, tardes, férias. Passamos a ser verdadeiros aficionados dos passeios de moto em estradas secundárias e descobrimos nessas viagens que havia muita coisa para aprender.
Aprendemos, por exemplo, a localizar estradas boas no mapa. Se a linha for sinuosa, é boa. Significa que há morros. Se a linha parece representar a rota principal de uma cidadezinha para uma cidade maior, a estrada não serve.
As melhores geralmente são aquelas que ligam localidades sem grande importância, variantes de uma via que corta caminho. Se você estiver saindo de uma cidade grande na direção noroeste, nunca siga a estrada durante muito tempo. Saia e comece a dar voltas, indo para o norte, depois para o leste, voltando a seguir para o norte; logo você se achará numa estrada secundária, usada apenas pelos habitantes do lugar.
Nos fins de semana prolongados viajamos horas seguidas nessas estradas, sem ver nenhum outro veículo e, ao cruzar uma rodovia federal, observamos a longa fila de carros engarrafados até a linha do horizonte; dentro dos carros, rostos carrancudos. E crianças berrando no banco traseiro. Fico querendo encontrar um jeito de lhes dizer alguma coisa, mas eles estão de cara fechada, parecem apressados e não dá´
A menos que você goste de gritar, não poderá conversar enquanto anda de moto. Em vez disso, passa o tempo tomando consciência das coisas e refletindo sobre elas: o panorama, os sons, o tempo, recordações, a moto, a região onde está. A gente pensa nas coisas com muita calma e vagar, sem pressa, sem a sensação de estar perdendo tempo.
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