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Psicanálise se depara com uma nova definição de humano na era digital

 Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista, professor do Departamento de Psicologia Clínica e coordenador o Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP (Universidade de São Paulo)... além de youtuber.

Acaba de ser lançado o livro "O Sujeito na Era Digital: Ensaios sobre Psicanálise, Pandemia e História" pela editora Almedina, de autoria de Leonardo Goldberg e Claudio Akimoto.

O texto começa por retomar as relações históricas entre a psicanálise e a renovação tecnológica lembrando de como nos seus estudos seminais em Paris, sob supervisão de Jean Martin Charcot, Freud acompanhou os primeiros desenvolvimentos em torno do uso da fotografia em psicopatologia, contemporâneo das lentes Rolleiflex, assim como Lacan dialogava com o modelo cibernético de Norbert Wiener, um dos mentores do Arpanet, dispositivo embrião da internet.

As relações entre tecnologia e investimento em saúde são historicamente complexas e profundamente desiguais. Por exemplo, nos anos 1990 a estimativa de gastos da Organização de Mundial de Saúde, para tratamento de HIV-Aids, tuberculose e malária, doenças endêmicas em países pobres, era de US$ 15 bilhões, ao passo que o gasto em tecnologia bélica era de US$ 864 bilhões e o faturamento do crime organizado era de US$ 800 bilhões.

Isso se mostrou uma prévia do que veio a acontecer com a distribuição das vacinas durante a crise mundial de covid-19.

O acesso a tecnologia afeta de modo transversal e difuso nossa experiência subjetiva, por exemplo, privando seletivamente crianças de acesso ao suporte escolar on-line, permitindo acesso diferencial a sistemas de suporte de vida, até mesmo na realização de práticas e ritos funerários.

Mas o foco maior do livro são as alterações clínicas e as reformulações conceituais trazidas pela prática da escuta psicanalítica on-line. Como ela, ao ressaltar as transformações incidentes sobre a corporeidade na situação de tratamento, cria um certo empuxo ao imaginário.

Efeitos imaginários são efeitos de alienação, por meio do qual privilegiamos a relação em estrutura de espelho com o outro. Sentir o que o outro sente, entender o que o outro diz, saber imediatamente o que o outro "quis dizer" ao modo de um acolhimento fusional.

Uma análise é uma conversa que viola, de modo metódico e calculado, as propriedades imaginárias da fala. Não responder, responder de forma diferida e enigmática, responder de modo cortante ou adversativo, tudo isso fica estranhamente mais difícil na telinha. Os analistas se queixam de que de repente se pegam "conversando" com seus analisantes.

Mas se para Lacan a linguagem simbólica poderia ser reduzida ao código binário (0,1) e se é possível pensar o sujeito como exterioridade criada pela série assim formada, é em relação às noções de "verdadeiro" e "falso" que se observará as principais diferenças entre o simbólico maquínico e o simbólico humano. As chamadas lógicas não bivalentes, como a lógica fuzzy e a lógica paraconsistente (desenvolvida pelo brasileiro Newton da Costa).

Ora, desde a definição lacaniana da psicanálise como uma experiência dialética até a descoberta de que a gramática de nossas fantasias inconscientes é imune à contradição (ainda que comportem contrariedade e oposição) e culminando na descoberta da não proporcionalidade entre os corpos e prazeres sexuados, Lacan pesquisou os limites do que se pode escrever ou conceitualizar sobre o sujeito humano.

O trabalho de Goldberg e Akimoto avança ao mostrar as definições intuitivas do que é o humano, com sua corporeidade, presença e atualidade e seus regimes de definição por contraste: corpo-máquina, homem-animal, vivo-morto.

Desta forma, ao erro de idealizar a tecnologia soma-se o equívoco de idealizar a humanidade.

Neste sentido o texto valoriza o estatuto próprio do sujeito com um efeito de linguagem, ou seja, a um tempo nem natural, nem artificial, mas talvez uma terceira substância ou apenas um índice de que natureza e cultura, indivíduo e sociedade, pessoa e comunidade sejam apenas nomes para a divisão essencial que nos habita e nos define, esta sim universal.

E é pensando desta maneira que podemos entender por que o novo capital está na informação:

(...) a busca por cada vez maiores contingentes de pessoas para obtenção, coleta e uso de dados pessoais para a produção de riqueza e acúmulo de informação e poder. O investimento em novos mecanismos e processo de exploração e extrativismo (...)"

Goldberg, L. & Akimoto, C. (2021) O Sujeito na Era Digital. São Paulo. Almedina, pág. 88

Esta redefinição, ou melhor, confirmação do sujeito para além e para aquém dos dualismos que o definem, exige novo entendimento sobre a agência e a causalidade, indiretamente a capacidade de pensar em rede, em escala global, em escala transgeracional e, em segundo, um deslocamento perspectivo.

Ou seja, não apenas estamos no limiar da indistinção entre conversas e interações com um outro que pode ser uma máquina ou um robô, dotado de inteligência artificial, mas também da popularização e do acesso aos robôs pelas pessoas comuns. É o caso dos geminoids, duplos mecânicos ou eletrônicos de nós mesmos que poderemos escalar para nos substituir em quase todas as situações, inclusive no trabalho.

Isso deve ser acelerado pelo processo de home working, incitado pela pandemia. Alguém que é contratado para uma determinada função pode desenvolver rotinas e robôs, de uso próprio, que façam o trabalho por ele, tornando-se assim não só um empresário de si mesmo, mas um explorador do si mesmo como máquina.

Segundo Mbembe, o brutalismo é esta espécie de filosofia espontânea da indistinção entre vivos e máquinas. Ele mobiliza algoritmos, processos de controle, vigilância e acumulação de poder, promovendo reduções linguístico-discursivas envolvendo stickers, emojis e emoticons.

Mas isso não seria um problema em si não fosse o efeito colateral de nos fazer prescindir da fala. Curados deste hábito de falar, nossa empatia e solidariedade diminuem, nossa inclinação para a solidão aumenta. Sem a fala, a voz e alguns aspectos animados da face humana também se vão, e com eles nossa experiência mais fina de afetos, emoções e sentimentos.

Ou seja, nada de encantamento fetichista da presença mágica do humano, mas apenas efeitos indesejáveis decorrentes da redução de códigos expressivos e semióticos. Nenhum fascínio ritualístico pela situação de consultório privado, apenas efeitos de perturbação da mensagem, com suas interrupções, delays e quedas de conexão.

Como se pudéssemos propor uma analogia: qual a diferença entre a fruição estética de uma obra de arte em uma tela de computador e em um museu? Não é que o objeto "original" em presença tem mais valor ou que ele altere nossas percepções pelos sentidos, mas a existência da arquitetura.

Assim com a arquitetura e a voz, o luto é outro ponto de resistência a deslizarmos da máquina para o humano sem o intervalo representado pelo sujeito.

No luto há algo mais do que um desligamento, assim como na vida há algo mais do que ligações e "conexões" entre pessoas. Trata-se de um trabalho ativo da memória, capaz de acrescentar novas combinatórias e criar algo novo a partir do que poderia ter sido e do que jamais realmente será.

Processo análogo, mas invertido se encontrará na análise do primeiro programa de computador que simulava uma psicoterapia, na verdade uma primeira entrevista com um psicoterapeuta rogeriano.

Lembro-me de conversar com o "Eliza" no primeiro computador pessoal disponível no Brasil e ainda como estudante de primeiro ano de psicologia me perguntava: por que, com tantas coisas para simular e reproduzir, com tantos jogos possíveis e com tantos saberes a serem transportados para a linguagem digital, a psicoterapia é uma das primeiras coisas a ficar disponível?

Fato é que a máquina respondia com códigos de inversão típicos da comunicação empática, mas por mais que você soubesse que se tratava de uma máquina, havia um impulso a "proteger" o sistema de suas próprias limitações, de modo a levar a conversa adiante.

Anos mais tarde vim a perceber que esta espécie de proteção de algo que sabemos ilusório é parte essencial da transferência que nos permite analisar nossos analisantes, reproduzindo com eles a fonte e origem de suas dificuldades.

Assim como no luto, temos na transferência uma memória criativa que talvez seja o cerne das pesquisas futuras com psicoterapia on-line. Voltamos aqui à fronteira do imaginário e da conversa dual em espelho como problema central para um possível redimensionamento das práticas psicológicas em escala digital.


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